13.1.09

O IMAGINÁRIO EUROPEU E A AMÉRICA

Os Portugueses que tinham achado o Brasil e os outros europeus que voltavam das Américas, regressavam com toda a espécie de narrativas exóticas, novidades científicas, plantas, animais e até seres humanos, para serem expostos à curiosidade daquele Velho Mundo. Nessa época a Europa deixara para trás o período depois designado de Idade Média , sendo o Continente varrido pelos ventos renovadores do Renascimento.

A América descoberta, encontrada por Colombo, em meio a “mares nunca dantes navegados”, incorporou-se ao imaginário europeu com um leque de atributos que já havia sido destinado a ela numa época em que nem descoberta tinha sido. O fértil imaginário europeu já tinha construído como seu este Novo Mundo, restando para Colombo apenas a comprovação de tudo – e que tudo - o que havia sido produzido pela imaginação e pelo sonho incomensurável de seus contemporâneos.

Os incontáveis círculos eruditos dos geógrafos e dos cartógrafos, respondendo às várias ideologias religiosas e científicas, vinham ao longo dos últimos séculos se questionando e se informando sobre o que existiria “além mar”: riqueza ou devastidão, fortuna ou desespero, humanos ou demônios. Seria o fim do mundo ou um outro mundo ?

Através de variadas narrativas de viajantes como o italiano Marco Pólo e o português Fernão Mendes Pinto, o Oriente havia seduzido a imaginação daquelas sociedades em rápida transformação porém, para a quase totalidade das pessoas, os mares eram vistos como lugares de acesso temerário, habitados por monstros e fustigados pelas tormentas.

A primeira imagem concreta da América que surgiu aos olhos do europeu foi revelada por Colombo e ele a chamou de “Índias”. De fato, Colombo pensou ter chegado às Índias. Em conseqüência, tudo o que seria descoberto e encontrado nestas terras seria nomeado e carimbado como “indiano”.

Encontrou, no entanto, o descobridor dificuldades ao deparar-se com notáveis diferenças com o mundo, pouco mas já conhecido, das Índias como, por exemplo, no campo da fauna e da flora. No entanto aproveita a imprecisão, os exageros e as mistificações freqüentemente presentes nos relatos de viajantes. Alguns, se não muitos, não hesitam em incluir até inverdades para não falar em delírios provocados por distúrbios diversos. Afinal quem ia clamar por provas ou apontar incoerências? Estavam mais interessados no sensacionalismo e no exotismo dos fatos contados.

Mito e realidade, fantasias e fatos, todos elementos de um mesmo relato, cujo objetivo residia menos na fria veracidade científica do que no deleitoso prazer da diversão. Eis a América com a qual já se sonhava.

Os componentes de uma natureza até agora desconhecida eram recodificados, para serem integrados ao repertório dos objetos familiares dos europeus. Assim fazendo, toda descrição de algo não conhecido passava a ser relatada em termos de comparação com o que existia de mais parecido no conhecimento vigente.

Institui-se desta maneira uma visão de pouco rigor objetivo que impunha, em absoluto e sem exceção de espécie alguma, a referência européia como padrão do ideal universal para avaliar elementos totalmente diferentes, quando não integralmente desvinculados de qualquer objeto conhecido.

A Igreja e a aristocracia enxergavam na idéia de América uma fonte nova de poder e riqueza. Por razões estratégicas - que envolviam até técnicas de contra-informação, como a divulgação de mapas geográficos propositalmente falseados - as Coroas só permitiam a uns poucos e leais servidores o acesso aos bem guardados segredos da nova geografia.

Com o regresso das caravelas e as tripulações recheadas de novidades, as Américas passaram a serem descritas ora como longínquos infernos hostis, de climas insalubres, habitados por criaturas inumanas, canibais e bestas demoníacas, gente que parecia ter sido esquecida por Deus; ora como paraísos férteis, povoados de selvagens nus e gentis, pacíficos e felizes, que pelo contrário teriam sido protegidos em seu estado divinamente “puro”.

Se a fé de Colombo alimenta sua imaginação e o conduz a leituras de absoluta conformidade e harmoniosa sintonia com a espiritualidade cristã, seus entendimentos com os membros da Igreja obrigam-no também a conduzir suas narrativas nesta mesma direção. Assim sendo, Colombo vê mais com a fé do que com os olhos e reafirma a perigosa - já que deturpada e corrompida - prática de sobrepor o sonho à realidade e a crença à ciência. E, quando se vê confrontado a expressões da natureza que escapam aos modelos já conhecidos, fica desarmado e, segundo suas próprias palavras, obrigado a admitir sua incapacidade de explicar.

Nem mesmo o apoio dos textos bíblicos e as palavras dos homens de Deus poderiam ser-lhe de alguma ajuda para a análise científica. No entanto, tratando-se de interesse público, ou seja interesse do público, pesavam mais as versões exóticas e as palavras divinas do que os experimentos científicos e as teses racionais.

Logo nos primeiros relatos dos viajantes, o Novo Mundo despertou paixões inflamadas. A partir do início do século XVI os testemunhos passaram a separar verdades de fantasias, inspirando numerosas publicações repletas de relatos e imagens, o que contribuiu para uma visão mais apurada das, assim denominadas, Américas. 
O Brasil, a Terra Brasilis, é representado com florestas frondosas, frutos e águas abundantes, indígenas de pele escura, pássaros multicoloridos, estranhos e bizarros animais. Nesta época, apesar de todas as transformações e riquezas que chegavam agora do mundo inteiro, Portugal e Espanha ainda conviviam com uma sociedade na qual a religião detinha quase todo o poder e praticamente controlava as manifestações artísticas, ao contrário do que sucedia na Itália, França, Holanda e no resto da Europa mais liberta das tutelas teológicas.

Como todos os viajantes, descobridores e navegadores, ao se depararem com o Novo Mundo, o mundo não-europeu e pagão, Colombo opta pela descrição visual de tudo o que vê e observa. Conserva assim o poder de conhecer o desconhecido, e relatá-lo à sua maneira. O imaginário europeu acerca da América vai assim crescer e se multiplicar, salvo do rigor e do despojamento científico e racional para deleitar-se nas volúpias do barroco e do exotismo inusitado.

O livro C’est la déduction du somptueux orde..., editado em Rouen, França, em 1551 por Jean Du Gord, documenta a vida selvagem e comemora a entrada triunfal do soberano Henri II. Trata-se de uma documentação da entrada triunfal dos soberanos Henri II e Catarina de Médicis naquela cidade (em 1 de outubro de 1550) quando os europeus puderam ver índios desfilar no cortejo, exibidos como troféus.

Fabrica-se então uma América farta, opulenta e colorida, moldada na riqueza e na exuberância do já conhecido Oriente, mas também uma América imaginária, despudorada e sedutora. Os europeus se encantam, cedem aos charmes exóticos, deliciam-se com especiarias e sonhos, luxos e fortunas.

Foi então, no século XVI, que começaram a surgir na literatura e nas artes as primeiras figuras de ameríndios. Do ponto de vista dos conquistadores e seus aliados religiosos, tratava-se de povos que precisavam ser catequizados, integrados aos valores do Cristianismo universal, único caminho para poderem salvar suas almas e viver como crentes, uma tarefa gigantesca que agora se impunha aos evangelizadores.

Entretanto, eram muito diferentes as preocupações quanto às riquezas materiais, objeto imediato de pilhagens por parte dos “civilizadores” - e seria necessário decorrerem mais de três séculos para se abolir a escravatura nas Américas. Pinturas e gravuras da época, agora documentadas pelos relatos, revelam paraísos, uma natureza farta de frutas e animais e um esplendor de cores e sentidos colocados à disposição dos homens pelo Criador. Já na construção imaginativa oposta descrevia-se o índio selvagem, primitivo, bárbaro, nu, canibal, pagão, ignorante, inserido num ambiente inumano, atormentado por um “calor infernal”, às voltas com as suas florestas intransitáveis, seus animais ferozes, suas doenças letais. Enfim, uma visão terrena antecipada do que seria o inferno, tudo isso criado por Deus para “castigar” os selvagens pagãos.

Estas duas visões maniqueístas, por vezes figuram conjuntamente nos livros dos viajantes, abundantemente ilustrados, aliás mostrando menos uma oposição e mais propriamente um sentido complementar entre elas. Aos poucos foram sendo abandonadas as concepções intolerantes, radicais e ilusórias, desprovidas de realismo.

No Velho Mundo alastrava então uma nova ordem, uma sociedade mais aberta. Os cultos sábios humanistas do Renascimento iriam desempenhar um papel fundamental, influenciando a sociedade e as artes de maneira profunda, procurando uma convivência harmônica entre a Ciência e a Religião, que porém estaria longe de ser pacífica ainda pelos séculos vindouros.

A CIÊNCIA E O IMAGINÁRIO

O imaginário europeu, nutrido agora com dados científicos, relatados em cartas náuticas e experiências descritas em relatos de viagens, abre-se para as Américas, enriquecido pelas idéias do Renascimento. Imensa quantidade de gravuras e desenhos revela um outro ser humano, bem diferente do europeu: índios em contato direto com a natureza pródiga, de corpos saudáveis e bem torneados, bem alimentados de carnes e frutas, adornados com jóias e plumas. Uma concepção distante do imaginário anterior dos homens primitivos, deslocando-se em bandos miseráveis, vestidos com peles de animais, acocorados em volta do fogo, em paisagens áridas, sofrendo uma vida de pobreza e perigos, apenas sobrevivendo tristemente. Era a visão de um mundo onde não existia prazer, nem alegria, nem conforto.

Quanta diferença da indolência sensual e contagiante dos índios, com sua fartura e diversidade de alimentos, a beleza dos corpos, os risos e as brincadeiras de seus passatempos! Espantaram-se os descobridores com a variedade e diversidade dos povos na América, ricos e particulares, suas línguas, culturas e costumes.

Quantas maneiras e modos diferenciados no que tocava o simples cotidiano; não somente a linguagem, a alimentação, o habitat, e também aspectos de grande sofisticação, requintes até, nas pinturas corporais, nos adornos com plumas coloridas, nos objetos de palha trançada e nas ferramentas finamente esculpidas. Mas a eles lhes era ainda vetada, e assim o seria durante vários séculos, a noção de cultura, a qual na época só poderia pertencer ao vocabulário da civilização, isto é do Velho Mundo.

Nos seus relacionamentos, nas suas formas extensas e codificadas de se comunicar, dentro da mesma tribo ou não, dentro da mesma etnia ou não, tudo isto surpreendia os europeus que nunca poderiam imaginar encontrar em terras desconhecidas tantos povos com tantas variantes. As crenças e religiões, os tipos físicos, os níveis de desenvolvimento, eram muitas as informações e complexas as suas interpretações.

Muitos povos eram pobres, mas alguns possuíam riquezas fartas, ostentavam artefatos luxuosos e acumulavam tesouros de ouro e pedras preciosas. A mais completa ausência de tecnologias “modernas”, tais como ferro, arado ou pólvora não impedia um estilo de vida gerador de riquezas capazes de despertar sanguinárias ganâncias nos sonhos dos conquistadores que varreram as Américas do México ao Peru.

Nas mentes européias, a descoberta de sociedades humanas pagãs e primitivas, vivendo em aparentes paraísos, teve um impacto surpreendente. Na Europa cristã, a esperança de uma pessoa ser aceita no paraíso, anteriormente estava indissoluvelmente associada aos cristãos tementes a Deus e merecedores da escolha divina. Não podemos esquecer que se vivia na Europa Ocidental da Inquisição. O conceito de ser primitivo implicaria obrigatoriamente uma vida miserável. As revelações do Novo Mundo chocavam-se e desmentiam as concepções religiosas e as tradições filosóficas medievais.

Do século XVI ao XVIII se consolidará esse imaginário do poder, junto às descrições apelativas de Eldorados e de terras paradisíacas, ficções, ensaios, teatro, poesia, polêmicas, debates em torno da monarquia e liberdade, da cidadania, ou seja, da subjetividade moderna nascente. Shakespeare, Montaigne, Ronsard, Rabelais, Rousseau, Diderot, Voltaire, La Fayette alimentaram, cada um à sua maneira, o imaginário europeu sobre a América.

Surgiram mais tarde também teses de tipo romântico, que defendiam o contrário da visão tradicional: todo o homem primitivo seria bom, apenas se tornando mau quando corrompido pela sociedade. Era a “teoria do bom selvagem” imortalizada por um filósofo, nascido em Genebra, Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que vamos referir adiante.

Porém, não era possível dissociar a idéia do índio primitivo das suas práticas de canibalismo, o que estava presente em muitos relatos de viajantes. As opiniões sobre o tema divergiam: tratava-se de canibalismo ritual ou de antropofagismo alimentar?

Na prática, o canibalismo representou uma ruptura radical entre os indígenas e os conquistadores. A ingestão de pedaços de carne humana aparecia no imaginário europeu ora como forma de vingança dos inimigos vencidos, ora como prática ritual para adquirir as características das pessoas sacrificadas, mas sempre como um traço cultural abominável.

HANS STADEN DE HOMBERG NA TERRA BRASILIS: 
UM AVENTUREIRO NA AMÉRICA

Em 20 de junho de 1556 um alemão aventureiro e viajante compulsivo, dedicou ao “glorioso” príncipe de Hessen um fantástico relato de suas aventuras, decorridas principalmente em terras brasileiras: A História Verídica que descreve uma terra de selvagens nus e comedores de seres humanos, que se situa no Novo Mundo da América, etc. Seus escritos estão mais de acordo com a visão pessimista européia do Novo Continente: índios em que ninguém pode confiar, torturadores, traiçoeiros e canibais. Era uma descrição tão insólita para os europeus daquele tempo, que por muitos foi considerada um amontoado de mentiras. Após muitas peripécias, contadas em tom de tragédia, mas que freqüentemente deixam o leitor atual à beira do riso, os escritos de Staden nos dão informações interessantes sobre as relações entre nativos, portugueses e franceses.

Capturado pelos tupinambás perto de Bertioga, logo entendeu que eles o queriam maltratar. “Nisto me levaram para a cabana onde tive de deitar numa rede e mais uma vez vieram as mulheres e bateram em mim, arrancaram meus cabelos e mostraram-me como pretendiam me comer...com os pés atados desta maneira tive de pular pela cabana. Eles riam e gritavam: lá vem a nossa comida pulando...Deram voltas em torno de mim ...um deles disse que o couro da cabeça era dele, um outro que a minha coxa lhe pertencia...(eles) preparam uma bebida de raízes que chamam de cauim... Somente depois da festa é que matam (os prisioneiros, para os devorar) ...”

Não satisfeitos em ameaçar devorá-lo, mantendo-no sobre forte tensão, os índios levaram-no para Ubatuba onde tinham estabelecido sua aldéia. Com freqüência obrigando-o a assistir a rituais antropofágicos. Em determinada oportunidade, sem que se saiba o porquê de tal decisão, fizeram-no ir à aldeia de Tiquaripe, nos arredores de Angra dos Reis, obrigando-no a assistir a uma cerimônia no qual o ibirapema, o mestre das execuções, escolheu um dos inimigos aprisionados para ter a sua cabeça por ele esmagada. Os membros da tribo, já meio embriagados e muito exaltados, cercaram o cadáver, despedaçando-o e o devoraram em seguida.

Após inúmeras aventuras, que lembram as narrativas dos romances da Idade Média, o viajante alemão acaba por escapar, voltando à terra natal para contar suas aventuras aos incrédulos compatriotas.

Interessa, porém, observar, no que toca ao livro de Staden, as precauções que ele tomou na Alemanha para que acreditassem nele. A Europa do século XVI, o grande século das navegações, estava cansada de ler ou ouvir relatos cravejados de mentiras e absurdos diversos.

A tal ponto tinham chegado as coisas, que Rabelais, o grande satírico francês, fazendo mofa do livro do padre cosmógrafo André Thévet (Singularitez de la France Antarctique, 1558), decidiu-se inserir na sua obra (Gargantua e Pantagruel, 1564, Livro V), dois capítulos denunciando, pelo riso, o disparate das visões mentirosas que alguns viajantes tiveram no inexistente “País de Cetim”. Criou, também, como símbolo desses mitômanos, um personagem-caricatura, o “Ouvi-dizer”, que, apesar de ser um velho, corcunda e paralítico, tendo a língua esfacelada em sete pedaços, narrava, com um mapa-múndi aberto à sua frente, as suas impossíveis aventuras para uma multidão de crédulos. Eram histórias de unicórnios, de mantichoros com corpo de leão e cara humana, de cabeçudíssimos catoblepos de olhos venenosos, de hidras com sete cabeças, de onocrotalos que imitavam gritos de asno, de pégasos, e de tribos de seres com cabeças de pássaros, ou até mesmo com duas cabeças, de povos fabulosos que andavam apoiados nas mãos, com as pernas balançando no ar!

Querendo, pois, evitar ser chamado de embusteiro, Staden, além de banir do seu relato qualquer menção à zoologia fantástica, pediu a um conhecido seu do Hesse, um tal Dryander, que assegurasse a veracidade do conteúdo do livro. Staden, “ébrio de um sonho heróico e brutal”, viera a dar com os costados no Brasil para satisfazer seu gosto pela aventura, para ver de perto as maravilhas que escutara na Europa sobre o Novo Mundo descoberto. Foi na sua segunda viagem ao Brasil (na primeira ele conhecera Pernambuco) que Staden naufragou nas costas do litoral fluminense. Por saber lidar com canhões, os portugueses, que o acolheram muito bem, promoveram-no a artilheiro do Forte de Bertioga.

Nota: As aventuras de Hans Staden renderam no Brasil um filme longa metragem (dirigido por Luiz Alberto Pereira) e algumas edições de livros, entre as quais sugerimos Hans Staden, tradução de Angel Bojadsen, introdução de Fernando A. Novais, Editora Terceiro Nome, São Paulo, 1999.

JEAN-JACQUES ROUSSEAU, O ESTADO DE NATUREZA E O BOM SELVAGEM

Rousseau, a quem nos referimos atrás, foi um típico intelectual do seu tempo, do mais alto quilate, que o fez merecer o título de filósofo e precursor dos românticos.

Suas preocupações o levaram a muitos campos da cultura, mas neste caso nos interessam apenas os seus pontos de vista sobre os povos primitivos. Mostrou-se original e sensível ao aproximar o “estado de natureza” de sua teoria sobre o “bom selvagem”. Assim fazendo, nascia, como afirmou Claude Lévi-Strauss, a etnologia um século antes que ela fizesse a sua aparição.

A filosofia clássica afirmava que o “estado de natureza” representava uma era de barbárie na qual a formação e o usufruto da vida em grupo estariam definitivamente derrotados. Este “estado de natureza” posicionava-se somente como ponto de partida para o grande projeto da humanidade através de civilização.

Rousseau, por sua vez, revelou e valorizou as qualidades do “bom selvagem”, o qual desfrutava de um ambiente natural generoso e acolhedor ao ponto de poder satisfazer suas módicas necessidades ligadas à subsistência. Por outro lado, gozava de uma índole pacífica e pura, desprovida de desejos de riqueza, glória e poder, próprios de cidadãos civilizados.

Levando esta idéia além, ele considerava que através do raciocínio lógico chegaríamos a descobrir o estado natural: em primeiro lugar impõe-se o conhecimento do ser humano, o mais importante de todos. Por aí chegamos à conclusão que o selvagem primitivo era um ser robusto e preparado para o seu ambiente, sabia enfrentar os animais e viver em harmonia com a natureza.

Ao contrário, o homem civilizado é um ser viciado e cheio de defeitos. Olhemos para o exemplo dos animais, que em seu estado selvagem são auto-suficientes e cheios de beleza e, quando domesticados, perdem estes predicados, ficando dependentes do homem.

Os instintos dos selvagens primitivos eram poucos e simples: receavam a dor (física, claro, que outra qualquer eles ignoravam); suas paixões eram a nutrição, o repouso e a reprodução. Como nunca tinham refletido sobre a morte, logicamente não a temiam.

O homem natural não é bom nem mau, não faz juízos de valor sobre o que é vício ou virtude. Entretanto, no estado da natureza, as paixões (instintivas) são mais exacerbadas. O selvagem está com fome, alimenta-se e sua paixão se extingue.

Resumia Rousseau estas dualidades expressando que “a maioria dos nossos males é obra nossa”. Falando de amor, existem dois tipos, um que pode chamar-se de moral, mas que na verdade é uma forma fictícia de amor. Foi criado pela sociedade, “inventado pelas mulheres”; é muito diferente do amor físico, esse sim, verdadeiramente autêntico. Ao selvagem qualquer mulher lhe serve, como acontece com os animais. A educação, os hábitos e as culturas sociais, na verdade depravaram o homem e lhe roubaram sua autêntica natureza.

Deixando de lado os comentários absurdos - e desatualizados - sobre o amor e a condição feminina, nesta teoria do bom selvagem de Rousseau podemos verificar a visão otimista e idílica que os europeus passaram a ter dos povos primitivos - agora completamente separada do preconceito medieval que os considerava como seres inexoravelmente condenados às penas dos infernos.

Nota: os escritos de Rousseau, provocaram influências variadas, vastas e profundas no pensamento ocidental. Para o tema do “bom selvagem” o leitor encontrará facilmente inúmeras páginas de divulgação cultural em nossas enciclopédias. Poderá consultar, entre essas fontes: Rousseau, em tradução de Lourdes Santos Machado, enriquecida com as contribuições de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado, Editora Nova Cultural, São Paulo, 1999.

Os humanistas foram criando novos símbolos, metáforas e alegorias. Um dos temas prediletos passou a ser Os Quatro Continentes. É que aos Três Continentes, representados desde a Antiguidade e com muita influência dos cânones greco-romanos, os europeus acrescentaram outro, com a representação alegórica do Novo Mundo: uma mulher mostrada em sua nudez e sensualidade, com traços guerreiros, adornos de plumas e carregando arco e flecha. Era a América India.

Neste campo cada artista exerceu sua sensibilidade em conceitos e imagens que muito variaram e se tornaram patentes em suas pinturas. Há numerosos quadros e gravuras privilegiando temas simbólicos como animais exóticos, frutas tropicais, grande diversidade e riqueza de roupas. Outros sublinhavam os pendores guerreiros e referiam-se ao canibalismo, às qualidades maternais das índias, à interação com a natureza exuberante, o espírito comunitário, a vida indolente e pacífica.

Muitas pinturas apresentam algumas destas características combinadas, tentando representar equilibradamente a visão do Novo Mundo. Entretanto, de pinturas com alegorias especificamente relacionadas ao Brasil, só se tem notícia no Século XVII. Devemos mencionar que no século anterior o principal suporte pictográfico tinha sido a gravura em diversas formas. A xilogravura (entalhada em madeira), foi aos poucos cedendo espaço para outro processo de mais recursos artísticos, a gravura sobre cobre, praticada por muitos grandes mestres da época, sobretudo na Itália, Alemanha, Flandres e França.

O fascínio europeu pelas Américas promoveu uma mobilização ampla e profunda em todos os domínios da atividade humana. As conquistas, a constituição de impérios ultramarinos e o conseqüente enriquecimento dos países europeus, sobretudo de Portugal, Espanha, Inglaterra e Holanda, também motivaram os artistas, que foram progressivamente se libertando dos limites impostos pelos motivos religiosos, para se expressarem com mais liberdade.

Fonte: Raul Mendes Silva

Disponível em: http://raulmendesilva.pro.br/pintura/pag002.shtml