29.5.09

Constantinopla: esplendorosa metrópole

Chamavam assim a cidade de Constantino: a Maçã de Prata. Desde 11 de maio de 330, ela fora a sede máxima do Império Romano do Oriente, depois simplesmente designado de Império Bizantino. O imperador, que se convertera ao cristianismo, sentindo a decadência do lado ocidental dos seus domínios, decidira escolher um outro sítio mais seguro para servir de sua capital.

Trocou Roma por Bizâncio, abandonou o latim pelo grego e o título de imperador pelo de basileu. Mudou-se com a corte, a administração e as legiões, para aquela antiga cidade fundada pelos gregos no século VII a.C., então um pequeno porto situado no Bósforo - a passagem que ligava o Mar Negro (Pontus) ao Mediterrâneo (Mare Nostrum).

Nos onze século seguintes à sua refundação, ela, rebatizada de Constantinopla, foi uma das mais esplendorosas metrópoles da transição da Época Clássica para a Medieval. Esquina do mundo de então, vanguarda da cristandade na fronteira da Ásia Menor, para ela afluiu gente de todos os cantos. Nas suas ruas apinhadas e cheias de vida, cruzavam gregos, romanos, sérvios, búlgaros, árabes, venezianos, genoveses, godos, varegos, russos, tártaros, caucasianos, etc..., formando um burburinho permanente de vozes, de línguas e de dialetos os mais estranhos e bizarros.

De longe, tratava-se do maior centro financeiro, mercantil e cultural de toda aquela parte do globo, a referência viva de um império que no seu apogeu chegou a ter 34,5 milhões de habitantes. Viram-na como uma Segunda Roma, a Nova Roma, um chamariz para os peregrinos cristãos que vinham atrás das famosas relíquias que as coleções locais abrigavam. Por todos os lados encontrava-se uma impressionante oferta de objetos sagrados que enchiam de espanto os olhos do crente e incendiava a imaginação dos supersticiosos.

Relíquias e peregrinações

O imperador Juliano e sua corte
Espalhadas por catedrais, igrejas, palácios ou museus da cidade, encontrava-se lascas da Madeira da Cruz, o Sangue Sagrado, a Coroa de Espinhos, a Túnica Inconsútil, a Santa Lança, os Cravos que pregaram Cristo e uma série macabra de santos cadáveres (de Santo André, São Lucas, Santa Ana, Maria Madalena e Lázaro, o ressuscitado, e tantos outros mais), além das sandálias de Cristo e até os cabelos de João Batista; tal adoração supersticiosa culminava com alguns pães que teriam sobrado dos doze cestos, obra do milagre da multiplicação feita por Jesus (Mateus 14-15), e que estavam expostos numa coluna.

Desconhecia-se entre os cristãos daquela época, povo mais preocupado com as coisas da religião do que os bizantinos, assunto que os levava a travar, tanto os monges, os teólogos, o basileu e a gente comum, intermináveis discussões, geralmente estéreis ou inconclusivas, sobre temas bíblicos ou correlatos. Exemplo disso, foi a exasperante polêmica que ocorreu nos tempos da imperatriz Teodora, falecida em 548, entre os monofisistas, com quem ela simpatizava, e os ortodoxos ligados mais ao imperador Justiniano.

As relíquias que foram trazidas da Terra Santa, primeiramente por Santa Helena, a mãe do imperador Constantino, eram mantidas sob controle do clero ortodoxo, que fazia às vezes de Segundo Estado dentro do Império Bizantino. Posse que fazia inveja ao clero de Roma, de quem a Igreja Cristã Ortodoxa estava totalmente separada desde o Cisma do Oriente, ocorrido em 1054.

A Nova York daqueles tempos

Mapa de Constantinopla
De certo modo, Constantinopla foi no seu tempo uma espécie de mistura de Nova York com Jerusalém. Isto é, uma metrópole que conciliava perfeitamente os negócios e um intenso comércio com os assuntos da fé e da religião. Onde o luxo ostensivo da corte imperial e do patriciado local convivia com a pobreza e mesmo com a miséria, o ouro e os trapos circulando por perto um do outro.

Ao longo de uns seis século, as moedas bizantinas, o solidus ( antigo aureus romano) e o numma, foram as primeiras a ser realmente universais, sendo conhecidas, aceitas e cambiadas na maior parte dos mercados asiáticos ou europeus, enquanto o grande código jurídico do imperador Justiniano (Corpus Juris Civilis, 529-533), organizado pelo jurista Triboniano, criou os fundamentos futuros do Direito europeu e mesmo dos da Ásia Menor.

Como símbolo daquela proeminência toda, da magnificência imperial e teocrática que dela imanava (como sede oficial do autocrata do oriente e sé do patriarca ecumênico da Igreja Cristã Ortodoxa, obediente ao imperador), é que construiu-se a Hagia Sofia, a Igreja da Santa Sabedoria, aprontado em 537, templo imenso de 56 metros de altura, todo decorado internamente por belos mosaicos e incontáveis ícones bizantinos, encimada por uma estupenda cúpula redonda, erigida pelos arquitetos Antêmio de Trales e Isidoro de Mileno.

Ergueram-na bem na ponta da península, na Acrópole da cidade, local panorâmico, esplendido, que dá vistas para o mar de Mármara ao sul, e para o Chifre de Ouro ao norte, os dois lençóis de água que enlaçam Constantinopla e em cujas margens se abrigam excelentes portos como o de Eleutério, Kontoskalion e Sofía.

Constantinopla: uma luta desparelha

Se bem que decadente, quando os turcos a cercaram, debilitada pelas lutas internas, pelas brigas intermináveis entre as facções religiosas, a dos hesicastas e dos barlaamistas que separavam os cristãos ortodoxos: pela perda dos territórios da Nicomédia, da Anatólia, da Síria, da Palestina e do Egito, para o povo do Islã, Constantinopla era ainda uma presa formidável. Por ocasião do cerco de 1453, dos seus outrora 500 mil habitantes, só restavam 50 mil ou um pouco mais, mas isso não impedia o sultão de considerá-la a Maçã de Prata.

De nada serviu a valentia do seu último imperador, o basileu Constantino XI, Dragases, o derradeiro príncipe da dinastia dos Paleólogos a governar a cidade, ou o socorro, escasso, que o papa romano e os italianos lhe enviaram. Para a batalha final, os cristãos mal contavam com 7 mil homens, enquanto o invasor turco dispunha de bem mais de 100 mil soldados e uma poderosa frota de galeras. Era uma luta totalmente desparelha. Por isso, quando em certa manhã de maio de 1453, ainda na tenda vermelha de Maomé II, o sultão pediu um presente ao seu general Jalil Paxá, exigiu que trouxessem-lhe a Maçã de Prata (apelido dado a Constantinopla).

O sufoco dos turcos

Sultão Maomé II (1432-1481)
O cerco e ataque final a Constantinopla, nos primeiros meses do ano de 1453, foi acima de tudo um trabalho de muita paciência. Os árabes tentaram séculos antes tomar a cidade em duas oportunidades: a primeira delas em 677-8, e a outra durante os anos de 717-8, os anos do Grande Sítio Árabe. Também ousaram o mesmo os hunos (em 443 e 558), os ávaros (em 602 e 626), os persas (em 626), os eslavos (em 865), e os búlgaros (em 913 e 923). Mas a cidade, reforçadissima pelo seu complexo sistema de fossos e muralhas que a protegiam (a de Constantino e a de Teodósio), somada ao poder da esquadra bizantina, resistiu sem perigo aos assédios.

Verdade que antes ela fora barbaramente pilhada em 1204, pelos próprios cristãos vindos da Europa. Mas aquilo – o pavoroso saque de Constantinopla - resultara da traição dos cavaleiros da Quarta Cruzada em conluio com Enrico Dandolo, o doge de Veneza, que, ao invés de dirigirem-se para o Egito para debilitarem o poder dos sucessores de Saladino, resolveram assaltar a grande cidade que os acolhera. Episódio sórdido e escandaloso que opôs os católicos aos ortodoxos, afetando para sempre o espírito das Cruzadas e fazendo com que a parte da cristandade oriental se separasse ainda mais da ocidental.

A hábil estratégia dos turcos otomanos concentrou-se em ir envolvendo a grande metrópole aos poucos, agindo como se fora uma cobra-gigante engolindo um gado qualquer, centímetro por centímetro, deixando a cabeça por último. Logo após a ofensiva desencadeada por vários sultões contra as possessões bizantinas na costa sul do mar Negro, no transcorrer do século XIV, eles expandiram-se para dentro do território europeu (a ocupação da Sérvia após a batalha de Kosovo, em 1389). Então, um poderoso cinturão turco isolou Constantinopla do resto da cristandade. Após o fracasso da chamada Cruzada de Varna, realizada pelos húngaros em 1444, quando os exércitos cristãos que marchavam para ajudar Constantinopla foram derrotados pelo sultão na batalha de Varna, a cidade somente podia receber auxílio pelo mar. O que também não durou muito.

Além do bloqueio feito pela esquadra turca, Maomé II determinou a construção de uma impressionante muralha: a Rumeli Hisar, erguida à braço por 3.500 operários em apenas dois meses (abril-maio de 1453), para impedir qualquer tipo de ajuda vinda de fora, o que fez por reduzir-se ainda mais as esperanças dos cristãos. Para mostrar que não estava ali senão para aceitar a capitulação total e definitiva da cidade, o sultão ordenou a decapitação de uma delegação de legatários enviada ao acampamento dele pelo imperador Constantino XI, para tentar negociar algum tipo de acordo. Maomé II decidira que Constantinopla seria dele e que a bandeira verde do Profeta iria tremular na catedral de Hagia Sofia. Mandara ainda construir uma enorme calçada de madeira de 15 quilômetros que lhe permitiu contornar a entrada do Chifre de Ouro que estava bloqueada pelos bizantinos, transportando por ela uns 70 barcos de médio calado, prontos para o assalto derradeiro.

A queda de Constantinopla

As muralhas de Constantinopla
Encerrada a fanfarra, os canhões dispararam. Maomé II prometera a todos, três dias de saque, mas alertou para que não depredassem os prédios, edifícios e templos. “A cidade é minha!”, reiterou ele. Enquanto a infantaria turca buscava penetrar pelas brechas abertas nas muralhas, os janízaros subiam pelas longas escadas em direção às seteiras. Nem mesmo o terrível Fogo Grego, um líquido inflamável que queimava até sobre a água, jogado pelos cristãos lá do alto, conseguiu detê-los. Um esquadrão deles conseguiu saltar a muralha, e, suplantando a tenaz resistência dos bizantinos, correu para abrir um dos portões. Rompido o dique, fez-se a enchente. Milhares de soldados turcos esparramaram-se aos gritos pelas ruas e vielas de Constantinopla gritando vivas a Alá.

Quase toda a cidade, em meio aos horrores da pilhagem, dos estupros e dos assassinatos, foi tomada naquele dia mesmo de 28 para 29 de maio de 1453. A resistência cessara. Constantino XI morreu em meio as batalhas das ruas. Trouxeram a cabeça dele para o sultão, mas não houve certeza de que o achado macabro era mesmo do último autocrata do antigo Império Romano do Oriente. Um poder que durara exatamente 1.123 anos e 18 dias. Hagia Sofia, depois de despojada dos mosaicos e dos ícones virou mesquita muçulmana, sendo-lhe acrescentado quatros minaretes para os chamados às preces dos muazins, enquanto que o Bósforo tornou-se um lago turco.

Maomé II, a trote com seu belo garanhão branco, entrando na cidade tomada, desfilou por ela como o seu grande conquistador. E foi assim que o sultão passou para a História: Maomé II, o Conquistador. De fato, ele fizera o maior feito das armas turcas em todos os tempos. Entre os séculos XIX e XX, o Império Turco Otomano praticamente desapareceu do mapa, perdido em guerras contra outras potências ou por movimentos étnicos de emancipação nacional. Constantinopla, porém, rebatizada como Istambul, continua até hoje, passados 550 anos da conquista, a pertencer aos turcos.

Termos

Autocrata = de origem grega (auto + krátor), autoridade de um homem só, identifica o poder absoluto do imperador bizantino que reina sem nenhuma interferência de qualquer outro poder.

Basileu = rei em grego. Adotado também como titulo imperial em Bizâncio.

Bizâncio = antiga cidade grega rebatizada por Constantino como Constantinopla, no ano de 330

Bizantino = Império Bizantino ou Império Romano do Oriente, denominação adotada após a separação oficial entre o Império do Ocidente (Romano) e o do Oriente ( Bizantino), determinada pelo imperador Teodósio, em 395. Durou de 330 até 1453.

Bizantinismo = discussão inócua, sem sentido, sem objetivo, estéril, referente ao gosto dos bizantinos de manterem infindáveis debates sobre "o sexo dos anjos".

Cesaropapismo = concentração dos poderes temporais (César) e espirituais (Papa), situação típica do imperador bizantino que mantinha o patriarca subordinado a ele, fazendo da religião um assunto de estado e não do indivíduo. Símbolo do cesaropapismo era a águia bicéfala, escudo e bandeira do imperador.

Cisma do Oriente = separação das Igrejas Cristãs, ocorrida no ano de 1054, entre a fé católica (universal), predominante na Europa Ocidental, e a fé ortodoxa (a de linha certa, correta), com base em Constantinopla, expandindo-se para os Balcãs e para a Russia. Desde então, a Igreja Cristã viu-se divida entre a autoridade do Papa e a do Patriarca.

Monofisista = do grego mono + physis, uma só natureza, seita cristã ortodoxa do século VI, que considerava que Jesus Cristo tinha uma só natureza e não duas (a divina e a humana).

Patriarca = chefe da Igreja Ortodoxa, o papa da Igreja Oriental, sem ter porém a mesma independência do bispo de Roma.

Relíquias sagradas = culto e adoração a objetos que teriam pertencido a Jesus Cristo e a seus próximos, compreendendo igualmente as coisas dos santos e das santas, inclusive seus corpos ou parte deles.

Sultão = governante máximo dos turcos otomanos. Chefe de Estado e líder militar


Bibliografia
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O fim do Mundo Clássico, Lisboa, Editorial Verbo, 1972
Coles, Paul - 
Os turcos na Europa, Lisboa, Editorial Verbo, Presença, s/d.
Maier, Franz Georg - 
Bizancio, in Historia Universal Siglo XXI, v.13, Madri, Siglo XXI, 1974
Runciman, Steven - 
A Civilização Bizantina, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1961
Runciman, Steven - 
Historia de las cruzadas, Madri, Alianza Editorial , 3 v.


Fonte:Voltaire Schilling

Disponível em:http://educaterra.terra.com.br/voltaire/antiga/2003/10/13/001.htm