20.7.09

Esparta e a educação

Esparta e a educação


A cidade-estado de Esparta, situada nas beiras do rio Eurotas, na região do Peloponeso, na Grécia, foi um dos fenômenos sócio-políticos mais fascinantes da história em todos os tempos, tão fascinante que até seus vizinhos e rivais, os atenienses, dedicaram-lhe longos estudos sobre os usos, costumes e instituições lá vigentes. Aliás, é graças a eles, aos filósofos, a historiadores e pedagogos atenienses: a Platão, a Xenofonte, a Aristóteles, a Isócrates e a Plutarco, que sabemos como os espartanos viveram e quais eram suas idéias sobre a educação (Paidéia).

O Cenário Histórico


“Todo o sistema da legislação dos lacedemônios visa uma parte das qualidades do homem - o valor militar, por este ser útil nas conquistas; consequentemente a força dos lacedemônios foi preservada enquanto eles tiveram em guerra, mas começou a declinar quando eles construíram um império, porque não sabiam como viver em paz, e não foram preparados para qualquer forma de atividade mais importante para eles do que a militar.”

Aristóteles “Política”, 1271 b

Esparta, por força das circunstâncias da ocupação dória, de quem descendia seus habitantes, petrificou-se no tempo. A sua estrutura social e seu rígido militarismo pouco mudou ao longo dos cinco séculos de história. Era uma sociedade que, desde que adotou as leis de Licurgo, quase nada conheceu do que pode se chamar de evolução de um regime político. A razão disso foi que os espartanos, desde os começos quando chegaram à Lacedemônia como povo invasor, tiveram que enfrentar uma população hostil que os superava varias vezes em número e que se rebelava contra eles a mínima hesitação. Para afirmar-se nela como conquistadores e dominá-la, tiveram que sacrificar-se integralmente àquele tipo de vida. Desta maneira tornaram-se fóbicos às mudanças e às novidades. Como já se disse no passado e foi lembrado mais recentemente por Arnold Toynbee, “os espartanos tornaram-se escravos dos seus escravos”.


Excentricidades de Esparta

Constitucionalmente a polis espartana tinha algumas excentricidades. Por exemplo, ela era governada por uma diarquia, isto é, tinha dois reis que se revezavam no trono. Os monarcas (archangentai) descendentes das duas casas reais (a dos Agiadai e a dos Eurypontidai) eram controlados por um Senado (Gerúsia) composto de 28 senadores (gerontos), com poderes equivalentes ao dos monarcas e que atuava como uma espécie de órgão intermediário entre os cidadãos e o rei, tendo, segundo Platão, a função de lastro, dando estabilidade ao sistema. Para o controle geral da sociedade aprovaram, em tempos posteriores, uma espécie de regime de fiscais - o eforato - composto por cinco éforos, ou magistrados, eleitos pelo povo, que controlavam todos os aspectos da vida espartana, inclusive corrigindo e censurando os reis.


Devido à militarização generalizada dos costumes deles, chegaram a desenvolver uma linguagem própria, o laconismo: uma fala telegráfica que procurava expressar-se com o mínimo possível de palavras. Obviamente, numa sociedade em que não se cultivava a democracia nem o fascínio pela oratória, não era necessário um estudo muito profundo das coisas nem se estimulava os discursos retóricos, muito menos a especulação filosófica.

Licurgo

Licurgo (mosaico antigo)
Os espartanos atribuíam a existência da sua severa e abrangente legislação a Licurgo (que viveu provavelmente entre os séculos 9 e 6 a. C.), tido entre eles como emérito estadista, uma espécie de pai da nação, um personagem quase que mitológico, pois o diziam descendente de Hércules. O grande homem teria implantado o seu rigoroso código, o código licúrgico, chamado de a Grande Rhetra, famoso em todo o mundo antigo, depois de ter feito uma peregrinação por várias cidades-estados da sua época, impressionando-se vivamente com os costumes existentes em Creta, onde conheceu o poeta Tales, igualmente célebres por sua rigidez. Ao retornar, depois de ter passado pelo oráculo de Delfos e de entrar em contanto com a obra de Homero, de quem selecionou fragmentos das passagens belicosas, conseguiu impô-los pela persuasão e pela força à maioria dos seus concidadãos. Erguendo então os templos a Zeus Syllanius e à Atena Syllania como protetores e fiadores da constituição. Fazendo com que mais tarde o poeta Terpanto celebrasse a virtude dos espartanos dizendo:

“A lança deles era forte

A música deles era suave

Entre eles a justiça tinha

um lugar honrado”

O código licúrgico


Acredita-se, na verdade, que o código licúrgico, tanto no político como no educacional, resultou de uma gradativa adaptação dos espartanos às circunstâncias crescentemente adversas. Quanto maior era a resistência a eles na região onde viviam, na Lacedemônia, conhecida por suas sucessivas rebeliões e amotinamentos, mais os espartanos enrijeciam-se, mais militarizada tornava-se a maneira deles viverem Enquanto as demais
polisgregas passavam por várias e diversificadas experiências institucionais e por diverso regimes políticos, tais como a oligarquia, a tirania e a democracia, Esparta aferrou-se num sistema de castas militarizadas e disciplinadas, dominado superiormente pelos espartacitas, a quem vedavam qualquer atividade que não fosse exclusivamente as lides castrenses, tendo osperiecos como uma classe de colaboracionistas, ajudando-os na ocupação ou fazendo o papel de intermediários entre eles e os servos, e, no escalão bem inferior, os hilotas, os escravos da comunidade. Platão, num certo momento, definiu-a como uma timocracia, isto é governada pela coragem.

A Agogê, a educação espartana

Em seu próprio significado, a palavra que os espartanos aplicavam para a educação já dizia tudo: agogê, isto é, “adestramento”, “treinamento”. Viam-na como um recurso para a domesticação dos seus jovens. O objetivo maior dela era formar soldados educados no rigor para defender a coletividade. Assim sendo, temos que entendê-la como um serviço militar estendido à infância e à adolescência. Sabe-se que a criança até os sete anos de idade era mantida com a mãe, mas a partir dos 8 anos enviavam-na para participar de uma espécie de bando que era criado ao ar livre, um tanto que ao deus-dará, onde terminavam padecendo sob um regime de permanente escassez alimentar para que desenvolvessem a astúcia e o engenho para conseguir uma ração suplementar. Adestramento muito similar ao que hoje é feito entre os regimentos especiais de combate contra-insurgente ou dos batalhões da floresta.

Castigos físicos

Licurgo
Admitiam, pois o ardil e o roubo como artifícios válidos na formação das suas crianças e dos seus jovens. Pegos em flagrante, no entanto, ministravam-lhes castigos violentíssimos, sendo submetidos àchiamastigosis, às supliciantes provas de flagelação pública.


Dos 12 aos 15 anos instruíam-nos nas letras e nos cálculos e, naturalmente, no canto de hinos patrióticos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida. Na etapa final, entre os 16 e 20 anos, quando denominados de
eirén, um pouco antes de entrarem no serviço da pátria, eram adestrados nas armas, na luta com lanças e espadas, no arco e flecha. Então lhes aumentavam a carga dos exercícios e a participação de operações militares simuladas nas montanhas ao redor da polis. Como observou Plutarco, o objetivo era de que sempre andassem “como as abelhas que sempre são partes integrantes da comunidade, sempre juntas ao redor do chefe... parecendo consagradas inteiramente à pátria.”


Cultivando a excelência da força física, que fazia com que Esparta quase sempre arrebatasse os louros nos jogos olímpicos, atuavam em bandos liderados por um
proteiras, um líder de esquadra, uma espécie de sargento instrutor, que lhes ensinava as táticas da arte da sobrevivência. A essa altura do agogê, perfilava-se o que Esparta desejava do seu jovem: silencioso, disciplinado, antiintelectual e antiindividualista, obediente aos superiores, vigoroso, ágil, astuto, imune ao medo, resistente às intempéries e aos ferimentos, odiando qualquer demonstração de covardia, fiel ao esprit de corps e fanaticamente dedicado à cidade.


O cultivo da coragem


Platão, ao comentar a educação espartana, observou que sua principal falha era exatamente a ênfase excessiva nos exercícios físicos, conquanto que a boa educação resultava de um composto da ginástica e da música, aqui entendida como a educação humanística em geral. Além disso, a obsessão militarista impedia-os de saberem conduzir-se em tempos de paz e mesmo em administrar sociedades conquistadas por eles que não tinham os mesmos valores deles. A ausência de elasticidade os fazia perder. A crítica maior, porém, dirige-se ao objetivo final disso tudo que era a de desenvolver exclusivamente a coragem (thimos). O jovem, transformado num menino-soldado, não teria receio de nada que envolvesse as artes militares, as manobras em campos de batalha ou as ameaças dos inimigos da coletividade. A coragem, antes de tudo, era uma obsessão espartana. Por conseqüência não apreciavam nenhum tipo de tolerância, nem desenvolveram sensibilidades outras que os tornassem mais humanos e cordatos.

Intolerância

Atenas conduz a alma de Hércules para o Olimpo
Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade, algo veemente repelido do seio daquela sociedade. Para corrigir eventuais defeitos de comportamento e possíveis hesitações, os instrutores recorriam à sinistra presença do mastigáphoroi, o “portador do látego”, encarregado em aplicar chibatadas e suplícios outros que eram estendidos inclusive às mulheres, paradoxalmente consideradas as mais livres e as mais endurecidas da Grécia Antiga.


A fim de dotar de coragem os seus infantes, os legisladores espartanos criaram a críptia (kryptia), um “esquadrão de extermínio”, que estimulava os jovens selecionados a caçarem, sozinhos ou em grupos, os hilotas, os escravos que por acaso andassem desgarrados ou que, de alguma forma, representassem pelo seu vigor físico uma ameaça à segurança deles. Localizados, eram vitimados pela espada ou pela lança, armas que o bando de jovens sempre traziam consigo. Na verdade, as operações da críptia não passavam de assassinatos legitimados. Foi essa liberalidade homicida, este direito dos mais forte matarem a quem bem entendessem que fez com que dissessem que os
“espartanos livres eram completamente livres, e os escravos, escravos até os limites.”

Influências


Tal sistema educacional, na verdade um adestramento para as armas, graças ao seu conservadorismo e tradicionalismo, que se somavam a uma ausência de crítica e à completa cegueira patriótica, fez as delícias dos pensadores aristocratas da Grécia Antiga, que o tomaram como um regime perfeito, um modelo (
arkê) a ser seguido por todos. Modernamente, os regimes fascistas e nazista abertamente nele se inspiraram para a montagem das balilasfascistas e da Hitlerjügen, a juventude hitlerista nacional-socialista, nos anos 20 e 30 do século XX. Até mesmo Rousseau, identificado como o mentor da pedagogia liberal dos nossos tempos, não se poupou em render homenagens ao agogê por estimular o ardor patriótico e a valorização da coletividade bem acima do interesse privado.


Mas também se projetou, num sentido bem mais amplo, por outra razão: a defesa da idéia básica de que a educação era um assunto de interesse coletivo e que não havia ninguém melhor do que o Estado para promovê-la. Ele era o único instrumento coletivo capaz de poder integrar ou sublimar as vocações privadas, submetendo-as ao bem geral. Essa era a admiração maior que Platão devotou ao sistema educacional espartano, cujo modelo não se encerrará apenas nas preferências do filósofo, mas também renascerá com toda a força no Iluminismo, no século XVIII. A partir de então, a educação estatizada, pública e gratuita, tornou-se moeda corrente em todos as políticas educacionais modernas, não importando qual a sua ideologia.

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