8.10.09

História - Cultura e Pensamento

Ilustração e educação


A base teórica da educação moderna encontra-se no Século das Luzes, época do iluminismo. Uma série respeitável de filósofos, entre eles John Locke e Jean-Jacques Rousseau lançaram-se na arena para defender seus projetos pedagógicos que visavam fundamentalmente emancipar os homens da sua carga de obediência e servidão ao poderes instituídos, do estado e das igrejas.

O Cenário Histórico

“Logo, se nos perguntarem, vivemos agora numa época ilustrada? Responderíamos que não, mas sim numa época de ilustração. Todavia falta muito para que os homens, em sua atual condição, sejam capazes ou estejam em posição de servir-se bem e com segurança do próprio entendimento, sem acudir à estranha condução. Sem dúvida, agora têm o campo aberto para trabalhar livremente para a conquista dessa meta, e os obstáculos para uma ilustração geral , ou para a saída de uma culpável menoridade , são cada vez menores . Já temos claros indícios disso. Desde esse ponto de vista, nosso tempo é a época da ilustração...”

E. Kant - O que é a Ilustração?

Enquanto o Renascimento foi um movimento cultural e estético limitado a um ou dois pares de países europeus, quase que circunscrito à Itália, o Iluminismo irradiou-se por uma extensão bem mais vasta, atingindo inclusive a América. Seu cunho cosmopolita é inegável. Não se sentia entre seus participantes e ativistas - o que Peter Gay chamou de a “família iluminista” - nenhuma inclinação paroquiana, localista ou nacionalista. Diderot correspondia-se com Cataria II, a Grande, da Rússia, Voltaire e La Mettrie viveram em Sans-Souci, ao abrigo de Frederico II da Prússia. Rousseau chegou a elaborar uma constituição para a Polônia, Beccaria, o jurista italiano, fez mais sucesso em Paris do que em Milão e Jefferson , quando embaixador americano em Paris, emprestou sua casa para que deputados franceses elaborassem uma Declaração de Direitos inspirada na do estado da Virgínia. O alemão Johann Basedow , por sua vez, advogava o fim das escolas dominadas por seitas ou por religiões exclusivistas, pregando a necessidade de formar-se “apenas europeus”.


Seu esforço, basicamente, centrou-se em elaborar um novo paradigma que superasse o da teologia cristã e o do ethos nobiliárquico, rompendo a velha aliança clerical-aristocrática. Esforçaram-se por dotar a Humanidade de um outro Deus, que não o cristão. Um Deus da modernidade, um Deus pós-medievo, o Deus-Progresso. Na nova teologia , a iluminista, não existia pecado original , e se existisse ele era fruto da ignorância e a superstição, o mundo das trevas primitivas que impediam aos homens chegarem às luzes do progresso.


O paraíso não tinha sido perdido, como na visão judaico-cristã e no grande poema de John Milton . Ele simplesmente não havia ainda sido atingido. A possibilidade edênica encontrava-se pois, não num passado mítico, numa Idade de Ouro perdida, mas no futuro, ao alcance de boa parte da Humanidade. Ao contrário de vê-la, a humanidade, amaldiçoada em ter que viver
“num vale de lágrimas” , onde se contava os dias para unir-se ao Senhor, os iluministas chamavam a atenção para um mundo a ser desbravado pelo conhecimento, pela ciência e pela técnica. Enalteciam as qualidades humanas, tornando a Razão o grande instrumento de emancipação individual, depositando uma fé irrestrita nas possibilidades ilimitadas de auto-aperfeiçoamento humano.

Mesmo divergindo sobre a natureza humana, entre empiristas ou inatistas, viam-na de maneira positiva, sem os olhos malévolos da teologia cristã que enxergava em cada gesto espontâneo ou natural uma expressão do pecado , da perversidade ou mesmo do próprio demônio encoberto.

Precisava-se pois afastar-se da Igreja, símbolo maior do medievo sombrio. Distanciar-se dos padres e da crença nos milagres e seu conseqüente fanatismo religioso. Pregavam a tolerância. Que cada um fosse para os Céus“pelo caminho que melhor julgar”, como escreveu Voltaire nas suas Cartas Inglesas (Lettres philosophiques, 1734). Seus guias espirituais situavam-se não num passado remoto, como os clássicos greco-romanos o foram para os humanistas , mas sim no século anterior, no século XVII, quando a Razão teria emergido como sagrada na obra de Descartes e de Newton. A Alma foi então substituída pela Consciência, e o misterioso mundo cósmico passou a ser inteligível pela objetividade das Leis de Newton . Celebrou-se não só a Razão como Descartes inoculou em todos a idéia da dúvida, como o novo ponto de partida do conhecimento. Por efeito, todo e qualquer dogma , e mesmo uma afirmação tida até então como verdadeira, científica, devia antes passar pelo duro teste da dúvida cartesiana. Se conseguisse resistir ao seu crivo seria aceita, senão jogar-na-iam no entulho da mistificação ou da falsidade. Nada podia ser consagrado apenas por ser “clássico”, por ser“antigo”, ou pertencente à “tradição” .


Newton, por sua vez, estimulou os pensadores e cientistas a encontrarem as leis naturais dos seus respectivos ramos de conhecimento e especialização. Não havia nada que não pudesse ser submetido ao entendimento desde que se descobrisse seu funcionamento pelas tais leis.


Voltaram seus olhos, mais do que nunca, para a miséria humana. Repeliram a escravidão por considerarem-na inumana. Abominavam qualquer tipo de servidão por rebaixar o ser humano, submetendo-o injustificadamente a outrem. Indignaram-se com a continuidade dos flagelamentos, dos castigos corporais, da pena de morte, dos justiçamentos públicos, com qualquer coisa que ofendesse os direitos do homem.


Reformas eram necessárias e urgentes. Não importava se o príncipe que as executasse fosse um déspota, desde que se mostrasse ilustrado. Ressuscitaram a idéia platônica de um rei-filósofo. Só de que um rei-filósofo despótico, o único capaz de livrar o homem das desgraças da pobreza e das teias da superstição. Foram, evidentemente, nesse aspecto, ingênuos. Lembraram-se também do velho projeto platônico da educação estatal. Para Franklin e Jefferson instruir o povo estava na lógica dos direitos naturais. Ilustrá-lo era emancipá-lo. La Chalotai, no “Essai d’éducation national”, de 1763, não foi tão longe. Suspeitava que uma educação democrática, viesse a desprover a sociedade de trabalhadores que executassem as funções humildes. Apesar de concordar ser “justo os jovens serem educados pelo pessoal do estado,” revoltando-lhe o ensino administrado pelos padres, acreditava que o ensino público devia ser apanágio de um elite. Apesar dessas desavenças, concordavam em geral que o estado deveria, mais tarde ou mais cedo, assumi-lo.

Consagraram-se, os iluministas, porque suas idéias , em grande parte, materializaram-se a partir das Revoluções Americana, de 1776, e Francesa, de 1789. , Não tiveram, pois, a infelicidade dos seus congêneres, os humanistas da Renascença que se viram frustrados pela eclosão da Reforma e da Contra-reforma católica, que bloquearam suas esperanças de um mundo melhor, afogando-as ou incinerando-as nos suplícios da Inquisição ou nas batalhas das guerras de religião.

A Fisiocracia, a proposta educacional de Rousseau

A Liberdade, de posse da razão, afasta de si o fanatismo e a ignorância ( gravura alegórica de Boizot et Chapuis.)
Para entender-se o radicalismo da proposta de Jean- Jacques Rousseau, um dos poucos livres-pensadores do século XVIII a dedicar-se à pedagogia a sério, é preciso antes , ainda que rapidamente, descrever a representação social durante o Antigo Regime. O modelo de comportamento era ditado e inspirado pela Corte de Versalhes. Dela partia a moda das vastas perucas , do rouge, do batom e do pó-de-arroz, do salto alto e do espartilho para homens e mulheres, do leque para as damas e da bengala para os cavalheiros. E, todos, invariavelmente, enchapelados com vistosas penas. Enfim, circulava-se se ocultando. A sociedade parecia-lhes um imenso teatro onde cada um ensaiava seu papel , de duque ou de marquesa, de suserano ou vassalo, de nobre ou de plebeu, nunca se permitindo que o seu verdadeiro “eu” chegasse à luz. Esculpia-se um personagem e vivia-se de acordo com ele.

Elidir o que se passava em seu íntimo era a principal virtude nesse verdadeiro baile de máscaras que havia se tornado a sociedade francesa , paradigma da Europa inteira no século XVIII. Qualquer expressão direta do que lhes passava na alma deveria ser filtrada por uma série de escamoteamentos, de meias palavras, de subentendimentos, de truques verbais que tinham a função de evitar que eles - os reais sentimentos - aflorassem. Provavelmente isso resultou da vida cortesã, fruto de um longo convívio com o absolutismo onde, politicamente, tornara-se muito perigoso expor-se. Esse elaborado exercício de dissimulação não poderia deixar de terminar como terminou, no desbragado, ainda que informal, culto à hipocrisia. Essa, por sua vez, conduziu ao amoralismo, ao libertinismo, a uma vida dedicada às conquistas amorosas, fazendo por germinar uma intensa literatura licenciosa, quando não abertamente pornográfica, cujos maiores expoente foram Réstif de la Bretonne e o Marquês de Sade.


Daí entender-se o poderoso chamado de Jean-Jacques Rousseau a favor de um retorno à Natureza, de voltar-se a se colocar sob seu domínio. A obediência a uma Fisiocracia, a uma educação afinada com a natureza ( tomo aqui emprestado, dando-lhe um outro sentido, essa palavra que comumente é aplicada aos pensadores econômicos franceses do século XVIII que criticavam o mercantilismo). Que se buscasse dela se aproximar para praticar um espécie de ritual de purificação. O dedo acusador de J,J. Rousseau apontou para a sociedade. Desde a implantação da propriedade privada e dos interesses daí decorrentes, o homem se pervertera. Na sociedade do Antigo Regime essa deformação chegara ao seu triste apogeu. Retirou-o do seu aconchego natural e enfiou-o em Salões, em Castelos, em Palácios, num convívio antinatural, que promovia ou desenvolvia apenas seus vícios (hipocrisia, cinismo, mentira, vaidade, etc.) e nenhuma das suas virtudes.


A receita de Rousseau para ‘Emilio’

Sendo então que, por primeiro, era preciso o indivíduo passar por um processo de desintoxicação. Isolar-se. Caminhar no meio da mata e entre os córregos para que seus antigos e primitivos sentimentos voltassem a ser excitados. Nada de leituras muito intensas, visto que “o homem que pensa é um degenerado”. O retorno ao mundo natural feito pelo homem equivaleria à bíblica volta do filho pródigo. Regressar ao lar primeiro, reencontrar a bondosa e atenta mãe-terra e beber as essências em suas raízes, eis o seu projeto . Foi mais longe ainda. As desprezadas organizações selvagens eram melhores que as ditas civilizadas porque conseguiram preservar o homem no seu estado natural: “Os Caraíbas”, disse, “são duas vezes mais felizes do que nós,” e o indígena era “o bom selvagem”


Para melhor explicitar seu projeto pedagógico, decorrente de suas leituras de John Locke, Montaigne e dos clássicos, Rousseau recorreu a un élève imaginaire, um aluno de fantasia, um personagem de ficção, criou “Emílio” ( Émile , ou
Traité de l’education, 1762), que se tornou o paradigma de toda uma geração de pedagogos que se seguirem, de Pestalozzi, em 1774, a Alexander Neill, em 1920. O jovem de Rousseau deveria ser educado longe dos livros até os 15 anos. Antes, devido ao caráter puramente sensitivo, qualquer aproximação lhe parecia inútil: “liso e polido, seu cérebro”, escreveu ele, reflete como um espelho os objetos que lhe são apresentados...nada retém, nada penetra.”. Nesta fase predomina-lhe a memória sensível, que Rousseau identifica como a imaginação. Nada de palavras e livros que “são os instrumentos maiores das suas desventuras”, mas sim a própria experiência.


O entorno que cerca o jovem Emilio é o seu verdadeiro mestre. Assim ele vai tateando , construindo seu próprio caminho, tendo no mestre não uma autoridade do saber, mas um guia , um
“companheiro de viagem”, que o manterá longe dos perigos e das armadilhas da vida. Emílio é “obrigado a aprender por si mesmo,... usa sua própria razão e não a alheia.”

Rousseau condena o estudo da História como então era feito. Nada de memorizações, de decorar brasões, datas de feitos de reis e outros personagens heróicos , mas uma história que o aproximasse dos costumes da gente comum , que estudasse suas crenças e esperanças ( Rousseau pode a justo título ser apontado como o ideólogo da história das mentalidades que somente surgiu depois da 1ª Guerra Mundial, com a Revista Les Annales) . Seu suporte moral adviria das lições de civismo, de uma religião secular que celebrasse os feitos da coletividade.

Cultivaria a verdade e aceitaria que se punisse a falsidade. Inclinou-se para um ensino útil, que ajudasse o jovem a relacionar-se produtivamente com a natureza. Rousseau considerava os castigos perniciosos. Na verdade, eles produziam o efeito contrário ao pretendido. Com medo da flagelação o jovem era levado à mentira e à ocultação. A chibata não civilizava, embrutecia. Não extraía virtudes mas sim engendrava vícios. Desta forma ele inverteu o primado da educação até então aceita. Se o jovem era ainda um homem puro em embrião, castigá-lo fisicamente era perdê-lo. Se for a sociedade a principal responsável pelas deformações de caráter e de comportamento que os indivíduos apresentam , ela não tem autoridade para vergastá-lo. É ela quem deve ser reformada, não os que a compõe , porque esses, homens e mulheres, nascem bons e puros “é a sociedade que os corrompe.”

Dar voz ao coração

Estatua de Rousseau educador
Livrava-se, assim, o jovem de qualquer artificialismo. Seus sentimentos deveriam brotar sem restrições. A contrário , dava-se “voz ao coração” para que ele livremente se manifestasse. Sua pureza e inocência original eram o seu patrimônio sendo um crime caso os educadores terminassem por pervertê-lo. Note-se que - a condenação radical ao artificialismo - é o ponto de partida de uma profunda modificação dos costumes que irá ocorrer durante e após a Revolução Francesa de 1789 . O falso foi definitivamente suprimido: as perucas, as pinturas exageradas, as roupas espalhafatosas, o culto ao amoralismo, o beija-mão, o rapapé social, etc... Tudo declinou ou foi abandonado. Celebrou-se a fraternidade, a sinceridade, o amor cívico, a disciplina baseada na consciência e não no castigo. Com ele , com “Emílio”, o jovem republicano, estabelece-se como o novo paradigma, uma nova visão do homem, autônomo, procurando ele próprio o conhecimento, que irá orientar grande parte dos projetos pedagógicos contemporâneos.


Notas

1) A melhor discussão sobre educação na Grécia Antiga encontra-se na insuperável “A República”( Πολιτεια) de Platão, especialmente a partir do Livro III.


2) Sobre a educação das classes elevadas na época da Renascença, recomenda-se a descrição feita por Rabelais, do dia-a-dia de um príncipe, que se encontra no capítulo XXIII do “Gargantua e Pantagruel”, de 1532-4, e, tratando-se especificamente da educação política, nada melhor que o “O Príncipe”(Il Principe) de Maquiavel, publicado em 1532. Para a educação em geral, sob prisma de um humanista francês, sugere-se o capitulo XXVI do livro I, dos “Ensaios”(Esais) de Montaigne, intitulado “Da educação das crianças,” do qual J.J. Rousseau fez largo uso.


3) O grande tratado pedagógico do iluminismo foi o escrito, em forma de cartas, por John Locke a um seu amigo , intitulado “Alguns pensamentos referentes à educação” (Some Thougts Concerning Education) , de 1693, que teve enorme repercussão pelo século XVIII afora.

Conclusão

A moderna educação, laica e secular, parece-me resultado desses quatro paradigmas (ver a seguir) que herdamos do passado da história ocidental. Cada um a seu modo, terminou por influir na formação do pensamento pedagógico dos dias de hoje bem como das políticas educacionais adotadas pelos países ocidentais. De Esparta herdou-se o conceito de que a educação deve ser assumida pela coletividade e orientada pelo estado, concepção que, como vimos, foi retomado durante o Iluminismo e praticada a partir das revoluções americanas e francesas do século XVIII.


De Atenas aspiramos a idéia da formação (Paidéia) integral do ser humano, corpo e espírito, moldados pela ginástica e pela palavra (logos) e de que o ensino superior deve ser ministrado em locais especiais (Academia ou Liceu). O culto a personalidade ou ao individualismo seguramente nos veio do Humanismo renascentista, assim como a formação polímata (Humanidades, Ciências, Artes& Ofícios). E, finalmente, a concepção da educação voltada para a completa autonomia do ser humano é decorrente da influência do Iluminismo, tornando-se a principal mentora do moderno individualismo.


Evidentemente que essas várias concepções educacionais, que se são os nossos paradigmas, não se deram diretamente sobre a formação atual, mas foram filtradas através dos tempos pelos mais diversos tipos de experiência, assim como sofreram alterações motivadas pelas circunstâncias sociais e históricas em que foram aplicadas



Síntese dos paradigmas educacionais através da história


Origem: Esparta

Modelo: Agogê (domesticação)

Objetivo: A Coragem (Thymocracia)

Origem: Atenas

Modelo: Paidéia (formação)

Objetivo: A Palavra (Logocracia)

Origem: Renascença

Modelo: Humanismo

Objetivo: A Personalidade



Origem: Iluminismo

Modelo: Naturalismo

Objetivo: A Autonomia (Fisiocracia)

Fonte: