19.10.09

Tempo Presente: encontros possíveis entre jornalistas e historiadores

por: Daniel Santiago Chaves & Juliana Sayuri Ogassawara

O trabalho em questão aborda as conexões possíveis, as dessemelhanças mais evidentes e as considerações resultantes de uma reflexão sobre o encontro dos ofícios do historiador e do comunicador social no tempo presente, com vistas à subjacente interlocução ensaística e crítica.
Palavras-chave:
Jornalismo; História; Tempo Presente

Abstract
This paper searches the possible bonds, evident differences and considerations resulting from a reflection about the meeting between the work of historians and journalists in present time, looking for an interlocution flanked by essay and critic.

Key-words:
Journalism; History; Present Time.

“Somos horário, trabalho e fadiga / Somos a fábrica, apito e carvão
Somos o ferro, o concreto e a viga / A massa e o tijolo, a casa e o chão
Somos o livro, a escola e o médico / Somos carbono, caneta e papel
Somos o sonho, o verbo e o pronome / O terno e a valsa, diploma e anel
Taparam a boca do mundo / Fecharam os olhos do povo
Cortaram o desejo do velho / Tiraram a vida do novo“

(Quinteto Violado, “Tempo Presente”)


Fotógrafos do tempo, modestos forjadores de significado e de sentido: jornalistas e historiadores evidenciam convergências e divergências nas tramas da legitimidade dos processos sociais e temporais. Das arenas para se travar o encontro, seja a própria premissa de uma história do hoje, seja racionalidade crítica da história do tempo presente, permitir-se o intrincar de pautas e narrativas para os dois ofícios é mister na liquidez da contemporaneidade.

Muitas vezes encontramo-nos enlaçados no encontro “provocador, mas frutífero, entre historiadores sedentos de atualidade e jornalistas em busca de legitimidade histórica” (RIOUX, 1999, p. 119). Terreno ainda arenoso, tanto a história do tempo presente - espaço-tempo germinal de debate muito específico e delicado - quanto à noção própria de história do presente são relacionadas como uma provocação à história fincada nos cânones tradicionais (LE GOFF, NORA, 1995, p. 12).

Porém, antes, pode ser interessante que façamos a nossa remissão aos termos propriamente ditos desse encontro, nas suas prerrogativas mais capitais e incontornáveis. Nos termos de Ignácio Ramonet (2001, p.51), reside na ambiência da comunicação social a dúvida sobre o próprio futuro dos jornalistas.

Se a dita taylorização dos reticulares, impessoais e sempre “neo” media workers sancionaria a torção ética reificante sobre o resultante mais objetivo das tensões dialéticas em jogo, na superação operacional do córtex da construção crítica de significados, se vê igualmente devassada. As noções de tempo e o espaço, profundamente atingidas: não só o hoje, mas o passado e o futuro se vêem diante de um impasse agudo gerado pelo esgarçamento do ser, na promovida despersonalização da informação, em um endomarketing de perversão nas campanhas de eficiência, rapidez e sensualidade das redes informacionais de commoditização massiva.

Neste caso, em tempos em que a mídia “atualiza” a realidade constante¬mente, mais forte se torna a impressão de que “tudo é história; o que foi dito on¬tem é história, o que foi dito há um minuto é história” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 26). Assim se arquiteta o desafio da histó¬ria de converter o presente vivido em reflexão histórica (BLOCH, 2001). É nesta seara que se envereda este texto.

Se observarmo-nos a tendência já contestada - mas ainda não superada - da cultura global e dos termos que formalizam a via civilizatória única, ao defrontarmo-nos com os termos da renovada assunção hegeliana de um “fim da história” funéreo. A irrefreável busca por uma nova existência em um novo mundo, no século XXI, que repousaria sob os termos forjados da inédita e explícita história universal e unidirecional, da fabulosa oportunidade de aplicação dos princípios liberais - seja nas democracias estáveis ou nos mercados livres - seria o putsch derradeiro à mutabilidade inerente em toda experiência e madurez existencial do ser coletivo, narrado e narrador.

A constatação de que uma “infra-estrutura da informação global se expande em escala planetária como uma imensa teia de aranha” maximizou as suas ações de modo a suplantar o papel dos múltiplos atores sociais marginais em torno de uma pretensa narrativa unívoca, dotada de um só significado em um só caminho legítimo - e, por assim sugerir, unicamente lícito - extrapola qualquer primado crítico na ética, seja do historiador, seja do jornalista.

A popularização recente do ofício historiográfico reposicionou alguns oficiosos chanceleres mediáticos, com um impactante credenciamento a se falar da realidade em espaços antes tidos como naturalmente antagônicos: a televisão, o rádio, o jornal e as revistas abririam os seus meandros para a presença do historiador e os fez conviver, em rede nacional, para além do platonismo incidental dos espaços virtuais projetados do devir bacharelizado. Possivelmente, o surgimento de uma impossibilidade imediata - e para alguns, quase paradoxal - em se aplicarem modelagens neoclássicas para a explicação da realidade na ruptura do século XXI motivou essa presença inesperada, faminta por explicações e significados para a totalidade das convulsões sociais, políticas e econômicas do novo milênio.

Identidades se viam dissolvidas, comunidades refaziam Estados, nações eram perfuradas pela globalização, na galáxia dos homens atomizados e prontos para o novo e indecifrável, polarizado e caótico. Passava a existir, assim, uma ocasião inédita e possível no colapso milenarista da sociedade de credo neoliberal para que a dobra se curvasse em torno de uma aproximação que nunca fora tão estreita.

Ao mesmo tempo, como em raras oportunidades, o ensejo de compartimentalização e fragmentação do conhecimento se viram defrontados pelas oportunidades fluidas de uma explicação totalizante e, sem pormenores, alheia a todo o reducionismo. Nesse conjunto de explicações, consultadas durante as 24 horas do dia em tempo-real nos tantos canais possíveis na alta-definição pós-ciclópica, de inatingível qualidade na transmissão de informação, são retorcidos os fatos, as vozes, os atores e os processos históricos do hoje, do ontem e do amanhã. Em 15 minutos, pode perder-se a dimensão da veracidade: nos simulacros informacionais as pílulas da sujeição hiper-estimulante apresentam o indivíduo à sexualidade, à gastronomia, à política internacional e ao problema dos animais em extinção na Amazônia, alegoricamente mixadas ou num pastiche conjunto, às bordas da histeria, devorando signos e regurgitando alusões ao desejo.

Completa-se, então, um arco de possibilidades entre os três termos do Tempo Presente propostos por Bèdarida - veracidade, totalidade e ética. Mas também, para além de um olhar pessimista, é preciso recordar que “a história do presente é primeiramente e antes de tudo história” (BERNSTEIN, MILZA, 1999, p. 127). Seria: “Um vibrato do inacabado que anima repentinamente todo um passado, um presente pouco a pouco aliviado de seu autismo, uma inteligibilidade perseguida fora de alamedas percorridas: é um pouco isto, a história do presente” (RIOUX, 1999, p. 50). Debruçada sobre o presente, essa história contém um gérmen de desconfiança e suspeitas, semeado principalmente na questão:

Como de fato inscrever um presente fugaz na construção, ou reconstrução, necessariamente temporal ou retroativa, que elabora o historiador confrontando suas hipóteses de trabalho com a dura realidade da documentação e do arquivo recebido? Avançando um pouco a reflexão, percebe-se que essa dúvida remete a uma inquietação propriamente filosófica: o presente tem sua chance diante de uma longa duração que parece ser – toda a obra de um Fernand Braudel foi construída em cima desse ‘parece’ – a verdadeira modulação e a respiração vital do devir humano? (RIOUX, 1999, p. 40).

Respostas a esta questão seriam tão fugazes e transitórias quanto o presente, considerando a história do presente como janela de dupla face para a história do tempo presente, como um campo novo e visceralmente aberto a discussões teóricas
1. É possível, porém, alavancar uma reflexão sobre as relações entre jornalismo e história a fim de minimamente avançar na teorização sobre o presente e sua legitimidade, seja científica ou epistemológica.

A princípio, será possível considerar o presente humano como “perfeitamente suscetível de conhecimento científico”, e “não reservar seu estudo a disciplinas ‘bem distintas’ da história: sociologia, economia, jornalismo – ‘publicistas’, diz Marc Bloch – mas ancorá-lo na própria história” (LE GOFF, 2001, p. 25)?

Nesse sentido supracitado, o ofício do historiador seria a construção de pontes entre o passado e o presente, propondo correlações entre as duas temporalidades, considerando que a história do presente pertence a um tempo e de uma atualidade em que os atores e/ou os motes arrolados ainda circundam a sociedade. “Não é, portanto, um inventário de respostas das conseqüências do passado sobre o presente. Nesse sentido, a história do presente pensa os fatos históricos em termos dinâmicos e incorporados de atores sociais” (KUSHNIR, 2004, p. 57). Face ao imperativo de prudência no entrelaçamento entre passado e presente, é mister:

[...] pôr-se à escuta do presente para iluminar uma volta para o passado, mas evitar os efeitos não dominados do eco entre esses dois níveis. Quando tais efeitos vêm interferir sem controle entre o passado e o presente, mais tarde o julgamento do futuro revela-se impiedoso, pois todas as obras muito impregnadas de presente, ou nas quais o presente é mal controlado pelos autores, mal passam a rampa da posteridade. [...] O historiador, como homem do presente trabalhando sobre o passado, é, pois, julgado em segunda instância pelo futuro (SIRINELLI, 1999, p. 91-2).

Possivelmente, nessa ruptura permite-se ao historiador a abolição das suas funções antiquárias e pedestres junto ao passado, e o jornalista pode abandonar o imediatismo narcisístico do hiper-presente, para encontrarem-se na imensidão dos estudos sobre as relações humanas e seus processos na totalidade do tempo e do espaço, sem restrições e amarras nos terrenos.


Uma nova idéia de tempo para uma nova idéia do ser

“Já me falaram, como se fosse uma grande ofensa, que o que faço é jornalismo, e não história. Essas críticas surgem justamente porque não existe um debate sobre o que seja o Tempo Presente no Brasil”
Francisco Carlos Teixeira da Silva

Na atualidade, diante de um tempo altamente veloz, dinâmico e efêmero, presenciamos uma hiper-valorização do presente, extremamente catalisado pelas novas mídias. Talvez por esta razão, “o século XIX é conhecido como o século da história. E o século XX como o do fim da história. Mas a história não acabou. O que mudou foi a idéia de tempo” (MARRACH, 2001, p. 278).

A mudança da perspectiva de tempo se torna evidente, sobretudo, com a incisiva atuação de uma mídia cada vez mais sofisticada desde o último século. “É aos mass media que se deve o reaparecimento do monopólio da história. De agora em diante esse monopólio lhes pertence. Nas nossas sociedades contemporâneas é por intermédio deles e somente por eles que o acontecimento marca sua presença” (NORA, 1995, p. 180).

A mídia “fabrica permanentemente o novo, alimenta uma fome de acontecimentos” (NORA, 1995, p. 183). Não que os crie artificialmente, mas impõe imediatamente o vivido como história. Assim, com a media mo¬derna, a relação dos homens com a história passa por um avanço considerável, porque a mídia se torna um ator e uma fonte da história (LE GOFF, 2003).

A história do presente coloca para a história em geral e para a história nova em particular problemas importantes. Não foi um historiador do ofício, mas um grande jornalista, que afirmou que, nesse domínio, os melhores também são os verdadeiros historiadores do presente, percebendo principalmente a necessária reconsideração do acontecimento – um acontecimento metamorfoseado pelos modernos meios de comunicação [...] (LE GOFF, 1995, p. 20).

Principalmente a imprensa evidencia um papel decisivo na transcrição, representação e inclusive na produção dos acontecimentos, uma vez que ao tornar público o fato, ela traz à tona e cristaliza – embora muito temporariamente – o momento histórico presente. Porém,

Se nosso presente é doravante uma sucessão de flashes, de delírios partidários e de jogos de espelhos, como sair dele para erigi-lo, em objeto de investigação histórica? [...] E essa preocupação com uma relação fiel e com a coleta do dossiê é redobrada, com todos os efeitos da rapidez adquirida pela ação generalizada da mídia, por uma espécie de vontade comovente de lutar contra uma massificação das efemérides que mantêm uma temerária amnésia nas nossas sociedades. “Aceleração da história”, mundialização das questões, imediatismo de uma informação torrencial vertendo “seqüências” que fazem as vezes de acontecimentos: esses lugares comuns do analista apressado do século XX excitam incontestavelmente um desejo de conhecimento instantâneo, nutrem uma inquietação surda em que se misturam nostalgia das “belles-époques”, reação de defesa diante do futuro, necessidade de continuidades marcadas e sede de identidade [...] (RIOUX, 1999, p. 41-44).

Nesse contexto, nas constelações de fait-divers do cotidiano narradas pela imprensa, percebe-se a prevalência da temporalidade “presente”, o que incita o prelúdio de uma reflexão acerca das afinidades e querelas entre mídia e história, no desafio de:
Deixar de odiar o presente. Eis algo difícil para nós que estamos sempre à espreita desses diversos “mundos anteriores” que fazem a delícia das construções intelectuais. [...] De fato, as grandes certezas desmoronam regularmente. Os acontecimentos, as mutações e as inovações fazem apelo a novas maneiras de pensar a sociedade (MAFFESOLI, 1999, p. 9).

Ao buscar novas maneiras de pensar a sociedade, consideramos que:

Já se foi o tempo em que se acreditava que, quanto mais distante de nós, mais científica poderia ser a História. Vivíamos ainda o mito da História positivista, aquela que “fazia os documentos falarem”, como se História não fosse uma articulação entre o nosso olhar e o acontecido. Não que eu aceite a idéia de esquecer o passado remoto. Fingir que filósofos gregos, profetas hebreus, legisladores romanos ou papas medievais não nos influenciam é ingênuo e tolo. Como ingênuo e tolo é tentar estudar o tempo presente de forma a-histórica, apenas pelo noticiário televisivo ou de rádio, com suas fórmulas batidas e levianas – “estamos observando um momento histórico, senhoras e senhores” (PINSKY, 2003, p. 8).

Críticas à superficialidade da mídia, principalmente nos formatos eletrônicos, não são raras. No entanto, e perante a nebulosa afirmação de Albert Camus de que “o jornalista é o historiador do presente” (RIOUX, 1999; LACOUTURE, 1990), é preciso frisar que jornalistas e historiadores atualmente apresentam uma tendência convergente entre seus ofícios, mas não uma conciliação entre o ritmo próprio da imprensa e o rigor do método histórico (LACOUTURE, 1990, p. 219), muito embora Jacques Le Goff considere que “a história do presente não raro é mais bem feita pelos sociólogos, os politólogos, certos grandes jornalistas, do que por historiadores de ofício” (LE GOFF, 1995, p. 50).

O principal confronto no duelo entre jornalistas e historiadores está nas implicações do rigor científico no desafio de passar o real vivido e midiatizado pelo crivo do método e da duração (RIOUX, 1999, p. 122). Portanto, mais prudente do que içar o jornalismo enquanto unívoco da história do presente é tê-lo como uma fonte de investigação:
Manancial dos mais férteis para o conhecimento do passado, a imprensa possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos homens através dos tempos. O periódico, antes considerado fonte suspeita e de pouca importância, já é reconhecido como material de pesquisa valioso para o estudo de uma época (CAPELATO, 1994, p. 13).

Tendo, portanto, a imprensa como fonte historiográfica, considera-se que o trabalho jornalístico se quer uma leitura da atualidade. A partir disso, o trabalho historiográfico se trata de uma releitura do tempo presente. Assim, “
mais precisamente, o estudo do jornalismo histórico é instrutivo, porque a história do imediato foi primeiro marcada pelo selo jornalístico. De certa maneira, ela é mesmo filha da imprensa” (CHAUVEAU, TÉTARD, 1999, p. 21-2).

No entanto, vale destacar que a imprensa, assim como a história, é uma matriz de construção da realidade, de representações simbólicas em torno do que se considera a “realidade”. Logo,

[...] A ciência que pretende propor os critérios mais bem alicerçados na realidade não deve esquecer que se limita a registrar um estado da luta das representações, quer dizer, um estado das relações de força materiais ou simbólicas entre os que têm interesse num ou noutro modo de classificação e que, como ela, invocam freqüentemente a autoridade científica para fundamentarem na realidade e na razão a divisão arbitrária que querem impor (BOURDIEU, 2002, p. 115).
.
Nessa perspectiva, discutimos os ofícios de jornalistas e historiadores, em suas similitudes e disparidades na utópica busca pela veracidade - e por vezes, acidentadamente, pela verdade - e na acirrada disputa pela legitimidade de sua “versão” nas distintas narrativas. A ética e a totalidade se vêem diretamente abalroadas pelo exercício de si, em objeção ao exercício do ser.
Arquitetos da realidade e do tempo?

Pretensos sujeitos da história, ao serem concebidos como “Donos do tempo” (KUSHNIR, 2004, p. 56), jornalistas e historiadores lidam com a construção de significados sobre a realidade. Estes termos são frontalmente desafiados ao debatermos com Teixeira da Silva a oportunidade do encontro disseminado e viral entre Comunicação Social e História. Nas suas palavras,

"É muito bem-vindo. Isso não era imaginável há pouco tempo atrás, quando as profissões de prestígio eram médico e advogado. Hoje o historiador, e também o cientista político e o antropólogo, têm uma respeitabilidade muito grande. Mas não podemos querer ser, evidentemente, os donos exclusivos dessa memória. (...) Uma minissérie da TV, “Amazônia”, por exemplo, constrói História. Nos barracões das escolas de samba se faz isso o tempo todo. Tudo que os brasileiros sabem sobre Chica da Silva, Dom Pedro e outros personagens, vem muito mais daí que de alguma tese produzida na universidade.
Nós, historiadores, talvez sejamos os menos populares, os que têm menos acesso à opinião pública nesse sentido. Não me acho no direito, por exemplo, de assistir a um filme e depois dizer: “Está errado, não foi assim que aconteceu”. A liberdade de criação tem de ser completa. Acho muito interessantes todas as visões da História do Brasil, seja a de uma Carlota Joaquina carnavalizada, seja a de um torturador com dúvidas, como aparece no filme “O que é isso, companheiro?” Eu não sei se torturadores têm dúvidas, mas o diretor quis colocar, e considero isso legítimo." (TEIXEIRA DA SILVA, 2008)


Poderíamos dizer que uma convergência entre imprensa e história está em seu foco aos homens “no tempo”, porém,

O movimento que interessa ao historiador situa-se para além ou aquém do burburi¬nho e do escândalo. A diferença é de escuta. O historiador busca proces¬sos nem sempre visíveis, ecos sem alaridos, harmonias e ressonâncias significati¬vas que marcam temporalidades descontínuas com ecos de continuidade. O caso Drey¬fuss, o escândalo Watergate interessam ao historiador não pelas atribuições e avatares dos atores envolvidos. Mas pelas transformações sofridas pela democra¬cia representativa no contexto da sociedade do espetáculo e dos meios de co¬municação de massa, em que a política passa pelo filtro de câmaras e microfo¬nes e as massas participam da vida pública através do espetáculo das mídias (MARRACH, 2001, p. 281).

O jornalismo é um ofício, “não é nenhuma cruzada” (ABRAMO, 1988, p. 110). Assim, a narrativa jornalística é assumida como um relato sobre a atualidade, orquestrado por estruturas próprias: o lead, a pirâmide invertida, os valores-notícia, os manuais de redação e estilo, a dinâmica das redações, a pressão do deadline, os ritmos alucinados da edição, da editoração, e finalmente, da impressão/publicação e, principalmente, sob a batuta da atualidade, do imediatismo e do mercado.

Usualmente criticado por seu atrelamento com o mercado, o jornalismo carrega o fardo da notícia construída nos alicerces do poder político, manipulação ideológica e norma mercadológica: “Notícia é a informação transformada em mercadoria com todos os seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais” (MARCONDES FILHO, 1986, p. 13). As notícias apresentam fragmentações da realidade, pois desvincula a notícia de seu contexto sócio-histórico, diluindo os contornos de sua compreensão crítica na contemporaneidade. “P
ara a mentalidade fragmentada, a fragmentação noticiosa cai como uma luva” (MARCONDES FILHO, 198, p. 41).

Muitas vezes, o discurso tecido por jornalistas é delineado por essas pressões, o que causa impacto também no estilo, ofertando ao leitor um texto raso, tendo na notícia uma espécie de pílula pronta para ser consumida e rapidamente digerida pelas diversas fatias do mercado editorial. Dentre muitos fatores, aí advém a crítica:

Jornalista passivo e mecânico, informação manipulada, texto fragmentado e relâmpago, compreensão comprometida ou anulada – eis aqui o samba de uma nota só que dá o tom e dita o ritmo, de maneira hegemônica, da orquestra industrial jornalística, nesse começo de novo século (PEREIRA FILHO, 2004, p. 18).

Severas críticas miram a mídia por sua consideração por vezes leviana em relação aos fatos e às fontes, por priorizar o imediatismo em detrimento da reflexão, pois o jornalismo, “
forma elementar e balbuciante da história imediata”, é terrivelmente tributário da notícia inédita (LACOUTURE, 1990, p. 231).

Por sua vez, também a história é uma construção, uma prática e um discurso, porquanto os discursos falem da história e estão sempre na história: “
A história oscila, então, entre dois pólos. Por um lado remete a uma prática, logo, a uma realidade, por outro é um discurso fechado, o texto que organiza e encerra um modo de inteligibilidade” (CERTEAU, 1982, p. 25). A escrita da história é uma prática social interpretativa, na qual o historiador analisa o “estado da questão”, relacionando as idéias aos lugares no tempo (CERTEAU, 1982), articulando uma literatura, um texto, um discurso, e em última instância, um conhecimento acerca da realidade. Para De Certeau, citando, Edgar Morin: “Todo conhecimento, inclusive toda a percepção, é tradução e reconstrução, isto é, interpretação” (CERTEAU, 1982).

A crítica disparada ao discurso da história se refere ao seu tom tecnicista, erudito, prolixo, desprezando os amadores. “
O discurso histórico, além disso, é profundamente intelectualista” (CHESNEAUX, 1995, p. 75-6). Nesse sentido, ao passo que a imprensa visa atingir vários públicos, por uma ordem mercadológica, a história ficaria restrita apenas a um “respeitável” público. Esse ponto evidencia um atrito no diálogo com a sociedade.

Apesar de interpretarem – cada qual ao seu modo – o tempo presente, jornalistas e historiadores do presente não só se diferenciam pelo estilo do discurso. No que diz respeito às relações desses arquitetos da realidade com a sociedade, é importante considerar os desígnios atribuídos a tais trabalhadores. Enquanto o historiador publica suas compilações, análises, estudos densos a fim de conquistar permanência e contribuir para posteriores compreensões da História, o jornalista tenderia a construir um saber momentâneo “para o esquecimento”:

Sua missão consiste em forçar a atenção do leitor ou do ouvinte para cada “papel”, em mergulhar sem enfado na torrente ininterrupta de acontecimentos confusos que faz a atualidade, em vencer a angústia da pequena morte diária – a página de jornal é destinada ao lixo, a palavra e a imagem voam sem deixar traço tangível e são pouco arquivadas – redobrando de profissionalismo, só com o risco de acreditar que ele trabalha para o futuro ou de sonhar em editar um dia em volume seus trechos escolhidos (RIOUX, 1999, p. 120).

O jornalismo na trama de relações se vincula brevemente com outros atores sociais que “o
u pagaram pelo papel jornal para saberem o que se passava nos seus mundos, ou sofreram com a concretude material imposta pelo que estava impresso no jornal, mesmo que no dia seguinte, este tenha se tornado embrulho de peixe nas feiras” (KUSHNIR, 2004, p. 356). A imprecisa idéia de que “o que um jornalista presencia e relata hoje será parte dos livros de História amanhã”, muito propalada nessas arenas (PEREIRA, 2006), ilustra a proximidade dessa temporalidade. Ainda que debruçados sobre o presente, jornalistas e historiadores apresentam diferenças fundamentais na arquitetura de suas interpretações sobre a realidade.
Considerações finais

Considerando as diferenças entre jornalistas e historiadores do presente – de estilo discursivo e de finalidades – diríamos que as narrativas midiáticas podem servir à análise dos historiadores vistas como pontas do iceberg, isto é, como a parte visível que abriga uma imensa parte imersa (LE GOFF, 2003). A crucial diferença entre jornalistas e historiadores é de escuta e de perspectiva em relação à realidade.

Dadas as particularidades do trabalho do jornalista, na catapulta de uma sucessão de “hojes” publicados na imprensa, é possível afirmar que o jornalista busca erigir um quadro “das coisas como são” na atualidade imediata, disseminando interpretações a diversos públicos a fim de entender o que se passa no cotidiano. Aos historiadores, por sua vez, “
para entender a história é preciso conhecer, não apenas as coisas como são, mas como elas vieram a ser assim” (BOAS, 2006), estaria a missão de destrinchar esse iceberg.


Sobre os autores

Daniel Santiago Chaves é historiador, pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente e mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Juliana Sayuri Ogassawara é jornalista graduada pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e mestranda em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).


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NOTA:
1. Apesar de história do presente, história próxima e história imediata apresentarem diferentes cronologias, não será enfatizada a discussão epistemológica de suas particularidades, abarcando as três vertentes sob a égide do “muito contemporâneo” (Cf. CHAUVEAU, TÉTARD, 1999, p. 21). Consideramos, nesse sentido, a história do tempo presente uma proposição de racionalidade crítica que perpassa todas essas formulações, ainda que não haja compromisso inerente e invariável com as proposições teórico-metodológicas em debate.
CHAVES, Daniel Santiago & OGASSAWARA, Juliana Sayuri. Tempo Presente: encontros possíveis entre jornalistas e historiadores Rio de Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 4, Nº29, Rio, 2009 [ISSN 1981-3384]
Fonte: Tempo Presente