2.10.09

Nietzsche, Foucault e a história

A história da humanidade constitui-se como uma mancha formada por um líquido qualquer que se derrama por uma superfície plana: não tem direção, espalha-se sem sentido para todos os lados. No entanto, procura-se sempre a direção futura da nossa raça e as forças que a impulsionam, seu passado fundante e seu futuro redentor. O paraíso reconstruído é a promessa constante.


Em seu artigo, "Nietzsche, a genealogia e a história" (In. MICROFÍSICA DO PODER), Michel Foucault faz uma breve análise dos conceitos genealógicos desenvolvidos por Friedrich Nietzsche no século XIX, e mostra que o Ocidente inventa a história, por ele chamada de ascética, para encontrar no passado o momento fundante de sua unidade, de sua identidade. Uma Europa necessitada de um povo coeso, envolvida no caldo das lutas nacionalistas, vai buscar, e não encontrando inventa, o elemento ordenador que trará tranqüilidade existencial aos seus povos. E é neste momento que emerge o ideal ascético do historiador que, como escreve Foucault, deveria "imitar a morte para entrar no reino dos mortos"; ideal ascético que vem acompanhado pelo discurso científico que dá à história a "objetividade" e o título de ciência que reconstrói a "verdade". O historiador não fala e não sente, apenas percebe o ocorrido e o narra, "inocente", presenteando a humanidade com suas raízes.

Esta forma de historiar, tradicional, insere-se na mentalidade própria do momento em que emerge, que é marcado pela modernidade. O pensamento moderno é linear e teleológico: indica um princípio, um desenvolvimento, um fim último, um ponto de chegada, o ápice da realização humana. Tal pensamento, o da modernidade, permite a constituição de um saber histórico que trará um sentimento de segurança aos sujeitos humanos: conhecemos as nossas raízes, o solo em que pisamos, para onde vamos e o que queremos fazer; inventamos a tradição e nos agarramos a ela com todas as nossas forças. E este, então, o discurso da "história moderna", e ao qual se opõe a genealogia, que identifica no acontecimento, na emergência do novo, a regra da dispersão, a heterogeneidade, permitida pelos conflitos existentes naquela realidade. A genealogia não é a história, mas faz uso dela para identificar o "acontecimento" e a dispersão de forças que se encontram presentes no momento da "emergência do acontecimento". Mas assim como a genealogia faz uso da história, pode-se dizer que a história se apropria dos elementos genealógicos, inserindo-se em uma estrutura de pensamento diferente da moderna, em uma estrutura de pensamento que chamaremos de pós-moderna.

Falar em pensamento pós-moderno, ou em pós-modernidade, é enveredar por uma temática cujos conceitos ainda não estão bem definidos, o que gera muitos conflitos e deturpações do termo. Como não é objetivo deste discutir a pós-modernidade propriamente dita, coloca-se apenas que o pensamento pós-moderno é aqui compreendido como aquele que se opõe à proposta da modernidade acima apresentada. Portanto, falar em "história pós-moderna" é falar de um saber histórico organizado, mas não fechado, que rompe com a proposta linear de história; um saber que passa a trabalhar com conceitos como os de descontinuidade, ruptura, subjetividade. É fazer uso do saber histórico não no sentido de compor grandes unidades nas quais os indivíduos possam se reconhecer, mas no sentido de encontrar a heterogeneidade, a luta entre as forças que surgem de todos os lados e que constituem novos acontecimentos. É questionar a tradição, a origem e o devir. E é neste sentido que Michel Foucault fala em "história efetiva", apropriando-se ainda dos conceitos nietzscheanos, que é justamente aquela que trabalha a descontinuidade e a visão não totalizante, compreendendo que "as forças que se encontram em jogo na história não obedecem nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta".
É esta uma nova forma de olhar o objeto a ser estudado e historiografado, um olhar que procura a profundidade e não mais a continuidade nas "leis do devir".

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