27.11.09

Irmandades ajudaram escravos a influenciar cultura e religião do Brasil

Por muito tempo os historiadores acreditaram que, depois que os portugueses trouxeram os escravos para o Brasil, destruíram totalmente os laços que eles mantinham entre si e impuseram sua cultura e religião.


Por muito tempo os historiadores acreditaram que, depois que os portugueses trouxeram os escravos para o Brasil, destruíram totalmente os laços que eles mantinham entre si e impuseram sua cultura e religião. Contudo, uma pesquisa de mestrado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP contribui para mostrar que essa visão tem seus erros. No inferno da sociedade escravista, as irmandades leigas - associações de devotos que não pertenciam ao clero - de negros eram um espaço onde os escravos conseguiam influenciar a cultura da colônia e preservar os próprios valores, rituais e laços de solidariedade. Nas irmandades, por meio da religião, relacionavam-se escravos africanos, escravos nascidos no Brasil, senhores e membros do clero, que participavam das reuniões. Michelle Comar, autora da tese, estudou o cotidiano dessas associações na cidade de São Paulo nos séculos XVIII e XIX. Ela pesquisou atas de reuniões, registros de contas e outros documentos no arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo, no arquivo do Instituto Historiográfico e Geográfico e na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, do Largo do Paissandu. As três irmandades estudadas eram as de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, de São Bendito e de Santa Efigênia / Santo Elesbão. As irmandades tinham direito de falar diretamente com o rei, ter igrejas e realizarem reuniões. A Igreja Católica incentivava sua criação, porque as irmandades traziam novos fiéis, construíam e ornamentavam igrejas e arcavam com os custos de missas. Cada irmão pagava uma taxa e deveria participar das festas e cultos em honra do santo padroeiro e ajudar os outros. Senhores de escravos também contribuíam. As irmandades forneciam um espaço onde os escravos não eram vistos como simples mão de obra barata. "Eles não eram vigiados pelos senhores e podiam até mesmo falar as suas línguas nativas", esclarece Michelle. Diferentemente do ambiente da senzala ou das missas, nas irmandades eles podiam expressar a sua fé, "colorindo-as" com tradições das suas regiões de origem, Congo e de Angola, no sudeste da África. Eles trouxeram para os rituais católicos roupas mais coloridas, cantos, danças e uma preocupação maior com a morte. Na cultura africana, o cuidado dos vivos com os mortos era muito importante. As suas almas deveriam ser homenageadas. Como um reflexo disso, as irmandades realizavam missas após morte de cada irmão e enterros bem organizados. Um outro ritual importante era a coroação dos reis e rainhas da irmandade. Esse casal, que ocupava os cargos mais importantes, era levado em um cortejo teatral pelas ruas da cidade, vestindo roupas européias e cantando e dançando segundo o ritual africano. Como a cultura do Brasil colonial era baseada na visão, essa era uma forma de influenciar a sociedade e contar a história do grupo. "Uma cultura não assimilou (engoliu) a outra. Houve uma troca entre os africanos, os nascidos no Brasil e os europeus", esclarece Michelle. Solidariedade Por intermédio das irmandades, os escravos podiam preservar a solidariedade para com os seus iguais, um traço forte na cultura do Congo e Angola. A irmandade apoiava o irmão e, muitas vezes, sua família em ocasiões como casamentos, nascimentos e morte. "Quando um irmão ou irmã eram muito perseguidos por seus senhores, a irmandade pagava a sua alforria, libertando-o", conta Michelle. "Não era possível lutar contra toda a sociedade escravista, mas as irmandades faziam esforços para aliviar a opressão." Os irmãos que pagavam anuidade tinham direito a acompanhamento do caixão, um espaço no solo dos cemitérios e velas, comprados pela irmandade. "Houve um momento em que morriam tantos escravos que, algumas vezes, os senhores não os enterravam e jogavam os corpos nas frentes das igrejas", explica Michelle. "Para aquelas pessoas, era pavoroso que um parente seu não tivesse um sepultamento". Depois de algum tempo, as irmandades tinham uma igreja, ornamentos, os suportes para caixão, o guião (bandeira) da irmandade e o solo do cemitério. Era a garantia de que nenhum irmão ficaria sem ser enterrado. As irmandades também ajudavam a transmitir a cultura do Congo e Angola no Brasil. "Se os africanos que chegavam à colônia não tivessem um espaço para encontrar os que já estavam aqui, não haveria uma manutenção da cultura", diz Michelle. "Poderiam, por exemplo, deixar morrer o cuidado que deveria haver com o seu irmão de nação e tribo, já que as relações estavam esfaceladas pelo tráfico". Além disso, os africanos que chegavam primeiro ensinavam como agir no novo ambiente. As irmandades negras surgiram em cidades de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e São Paulo. Muitas delas estão vivas até hoje. Em São Paulo, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos está ativa desde 2 de janeiro de 1711. Em 298 anos, a irmandade construiu duas igrejas: uma, no Largo do Rosário (atual Praça Antonio Prado), foi destruída pela prefeitura para virar estacionamento; a outra, no largo do Paissandu permanece de pé. A pesquisa, orientada pela professora Marina de Melo e Souza, está disponível na Biblioteca digital de Teses e Dissertações da USP.

Fonte: portal Ciência & Vida