17.4.10

Henrique VIII, a coroa contra o mosteiro

Impossibilitado de ter o apoio papal na sua demanda pelo divórcio, iniciada em 1530, o rei inglês Henrique VIII decidiu-se por romper definitivamente seus laços com a Igreja Católica, vista por ele como um estado dentro do estado. O resultado disto foi a desapropriação real de mais de 500 mosteiros, abadias e conventos por todo o reino da Inglaterra e Gales, pondo fim definitivo aos privilégios do clero garantidos até então pela Magna Carta, de 1215.


Gastos inúteis


“... um expurgo nas ordens religiosas foi, provavelmente, considerada a tarefa mais obvia do novo regime – como função primeira de um chefe supremo.”’

J.J. Scarisbrick. – Henry VIII.

Durante quatro exaustivos anos, de 1530 a 1534, o rei da Inglaterra Henrique VIII tentou de tudo para obter junto ao Vaticano a autorização para divorciar-se de Catariana de Aragão, a infeliz consorte que não conseguia dar-lhe um herdeiro. O papa Clemente VII mostrou-se intransigente em aceitar os rogos do jovem soberano que desejava contrair matrimônio com a bela Ana Bolena.


Os tesoureiros da corte calcularam que as despesas com a demanda do soberano orçaram em 100 mil libras, uma fortuna. Henrique VIII, tipo de temperamento explosivo como todo Tudor, resolveu então dar um basta naquilo. Em 1534, fez o Parlamento aprovar o Ato de Supremacia que lhe conferia autoridade absoluta (Supreme Head) para assuntos seculares e religiosos. Repudiou oficialmente Catarina e declarou guerra à Igreja Católica.


Apoiado no relatório
Eclesisticus Valor, de 1535, conduzido por sir Thomas Cromwell, que fizera o levantamento da riqueza das ordens clericais, e por duas outras leis, ordenou a Supressão das Casas Religiosas.


O documento, chamado de
Black book, fora lido no Parlamento e nada de airoso ali foi dito sobre a vida monacal que se praticava na Inglaterra (viviam em ‘vicio, carnal e abominável’). Ao contrário, serviu como pretexto para a liquidação dela nas ilhas britânicas.


Sequioso por dinheiro e patrimônio, Henrique seguiu nas pegadas dos príncipes alemães que, aproveitando-se da condenação que Lutero fizera à existência enclausurada, não hesitou em tomar medidas drásticas, expropriando-os.


Fazendo aprovar pelo Parlamento as duas leis de Supressão das Casas Religiosas (contra os mosteiros de pequeno tamanho, em 1535, e, em seguida, em 1539, contra os grandes), o monarca simplesmente liquidou com as abadias e os priorados em toda a Inglaterra e Gales.


Entre 1536 a 1541, 552 edifícios dos clunienses, cartuxos, franciscanos e de outras ordens, alguns datando do século VI, foram desativados ou demolidos e seus bens expropriados. Em pouco tempo, mil anos de tradição foram varridos do reino inglês.

A rede de mosteiros

Henrique VIII Tudor (1491-1547)
A vida cenobita havia sido introduzida na Inglaterra vinda da Irlanda por influencia de S.Columbano, sendo que foi S.Niniano quem lançou a pedra fundamental do primeiro abrigo em Whiton, na Escócia, no ano de 400. Eram os mosteiros ‘ fortalezas espirituais do cristianismo’ em meio a um mundo ainda predominantemente pagão. Sua orientação seguiu as regras beneditinas que substituíram a organização celta, a partir de 597.


Espalhados pelo reino de norte a sul (Gloucester, Cantuária, York, Lancaster, Warwick, Exeter, Abringthon, Oxônia, Northumbria e Hackway), formavam uma verdadeira rede de edificações e retiros dedicados a acolher os devotos, os homens e as mulheres de Deus, entregues inteiramente ao
ora et labora, à oração e ao trabalho.


Com a irrevogável decisão de Henrique VIII, deu-se a maior transferência de propriedade de terras da história inglesa. Executada em duas etapas, centenas de herdades saíram do controle dos abades e das madres superioras indo parar nas mãos do rei herético (ele fora excomungado pelo papa Clemente VII, em 1533). Inclusive as regiões carboníferas de Durham e Northumberland, exploradas antes pelos padres e que rendiam 400 mil libras/ano, foram entregues a proprietários privados.


Para reforçar sua posição junto à aristocracia local, o monarca autorizou que parte considerável dos bens confiscados fosse, mais tarde, repassados a preços módicos à nobreza rural do reino. Deste modo, evitou que uma restauração do poder da Igreja Católica algum dia pudesse ser viável. Além disto, para acumpliciar o mundo acadêmico no esbulho dos monges e monjas, determinou que as fundações que amparavam financeiramente as universidades de Oxford e Cambridge - viveiros nos quais se criava a elite inglesa - recebessem parte considerável do sonante levantado com a venda do patrimônio espoliado. Foi assim que nasceu o famoso Trinity College de Cambridge, prestigiado pelo próprio Henrique VIII.


O que resultou que quase nenhuma reclamação partiu dos teólogos das duas grandes casas de ensino contra a política anticatólica adotada por Henrique VIII. (*)


Comentando os efeitos da revolução anticlerical desencadeada pelo Tudor, Karl Marx observou que
‘... o processo violento de expropriação do povo recebeu um terrível impulso, no século XVI, com a Reforma e o imenso saque dos bens da Igreja que a acompanhou. A época da reforma, a Igreja Católica era proprietária feudal de grande parte do solo inglês. A supressão dos conventos, etc., enxotou os habitantes de suas terras, os quais passaram a engrossar o proletariado. Os bens eclesiásticos foram amplamente doados a vorazes favoritos da Corte ou vendidos a preço ridículo a especuladores, agricultores ou burgueses, que expulsaram em massa os velhos moradores hereditários e fundiram seus sítios. O direito legalmente explícito dos lavradores empobrecidos a uma parte dos dízimos da Igreja foi confiscado tacitamente. ’
(O Capital, Livro II, cap. XXIV – A chamada acumulação primitiva, p.836-7)

O cesaropapismo inglês

Com o passar dos anos, o rei e seus descendentes investiram-se de maior autoridade ainda no que toca às questões religiosas, solidificando um original regime cesaropapista (união do poder secular com o espiritual), o que de certo modo contribuiu para que o Reino da Grã-Bretanha não padecesse das dolorosas guerras de religião que tanto ensangüentaram a França e o resto da Europa. A corporação monacal, por sua vez, sofrera um golpe do qual jamais se recuperou.


(*) Os maiores problemas que o rei teve que enfrentar vieram daqueles católicos ortodoxos que rejeitavam o Ato de Supremacia, como foi o caso do seu ministro Thomas More, que terminou decapitado em Londres, em 1535, por negar-se a aceitar o principio da soberania monárquica sobre a papal. Igualmente três outros monges e o bispo de Rochester tiveram destino igual, acusados de traição, por negarem-se a jurar obediência a Henrique VIII.

A súplica dos mendigos

Abadia cluniciense de Rievaulx (dissolvida em 1538)
A maioria dos acontecimentos dramáticos da história é antecedida por uma publicação de um livro, ensaio, poema ou panfleto eletrizante que ajuda a acelerar os procedimentos expondo a situação de um modo irrefutável junto à opinião pública. A Reforma inglesa deve isto ao panfleto de Simon Fish, um cavaleiro de Gray´s Inn, intitulado Supplication of the beggars, ‘A súplica dos mendigos’, editado em Antuérpia, em 1529, cidade onde se exilara e dedicado a Henrique VIII.


Acusado de herético pelo clero, Fish não foi executado em seu retorno a Londres porque morreu antes vitimado de peste. O panfleto de apenas 16 páginas causou enorme impacto psicológico, servindo como a espoleta que deflagrou a política anticlerical de Henrique VIII (ainda que ele não tivesse gostado dos argumentos de Fish na primeira leitura que fizera).
A essência do argumento dele centrou-se no fato de que a Igreja Católica era de longe a instituição mais rica do reino e que justamente por isto tentava usurpar o poder da monarquia, criando para si um estado independente da autoridade secular, um estado subversivo.


E a razão disto era de que o corpo eclesiástico concentrava uma parcela desproporcional dos recursos da nação.
Suas paróquias detinham a metade da riqueza da Inglaterra, ainda que os sacerdotes perfizessem tão somente um centésimo da população masculina. Os mosteiros, segundo ele, agravaram ainda mais a corrupção da Igreja porque, em vez de ajudar os pobres, os extorquiam ainda mais por meio de impostos.


O pior de tudo é que o sistema de tributos, entre eles o famigerado dizimo, havia gerado uma enorme casta de parasitas e qualquer pessoa que se opusesse a eles ou os questionasse (pela venda de indulgências ou penitências fixadas em dinheiro) terminava acusado de herético e submetido às varas ou às pesadas multas, se quisesse evitar o cárcere.
Fish, além disso, acusou o clero abertamente de traição por colocar-se o tempo todo acima da autoridade do rei. Imaginando-se um mendigo, sustentou que se aquele patrimônio todo que estava com os monges e frades revertesse para atender as necessidades do povo inglês, seguramente a miséria desapareceria.

Efeitos da revolução anticlerical

Provavelmente nenhum outro fator ajudou mais na consolidação do poder da monarquia sobre o restante da sociedade inglesa do que a mobilização engendrada pelo Tudor contra o formidável inimigo externo como era o caso do Papado Romano. Na imaginação popular, o rei pareceu-se a Davi enfrentando o colossal Golias. A partir de então, ser apontado como ‘ papista’ foi o equivalente a ser acusado de traidor.


Ao repudiar a autoridade do Vaticano, o monarca em nome da independência e da autonomia do trono, reforçou sua posição frente a todo clero das ilhas, como ainda retirou completamente o domínio que as ordens religiosas exerciam sobre a gente do campo, trazendo-a para o seu redil, transformando-a em firme súdita do rei (isto se mostrou fundamental quando sua filha, a rainha Elizabeth I enfrentou sozinha o maior poder imperial da época, o do rei da Espanha Felipe II, campeão da causa católica e do papismo, na famosa guerra de 1588).

Tomando-se em conta apenas estes dois aspectos, já pode se considerar que a política de Henrique VIII provocou uma revolução de profundas dimensões.
A isso, juntou-se o fato de que a difusão da Bíblia em inglês por todas as classe sociais ajudou a desaparecer as formas mais cruas da idolatria, como o culto às relíquias e da superstição.


Contribuiu, igual, para que o estudo da escolástica e do direito canônico fosse abandonado em favor de uma percepção mais critica dos fenômenos juridicos, resultado da crescente influencia do humanismo de Erasmo de Rotterdam, cujo pensamento permeou a elite inglesa daquele século. (*) Ele, e outros erasmistas ingleses, por igual, condenavam a falta de escrúpulos com que os religiosos agiam para extrair dinheiro da gente pobre.


(*) Ele ironizara os monges no seu famoso livro ‘Elogio da Loucura’, de 1511, ‘pela minúcia deles em seguir cerimônias idiotas e obedecer regras mesquinhas’, ver G.M. Trevelyan, pag.116-117)

A literatura gótica

‘O castelo de Otranto’ de H.Walpole
Como efeito ainda que tardio da gigantesca expropriação e devastação causada pela política do Tudor contra o império dos monges é interessante mencionar que na época do romantismo assistiu-se o surgimento da literatura gótica, um gênero de horror que fez enorme sucesso junto ao público leitor impressionável. Evidentemente que aquelas ruínas de mosteiros, de abadias e priorados, verdadeiros esqueletos arquitetônicos espalhados pelos campos ingleses, testemunhos mudos de um passado glorioso agora desaparecido, inspiraram a imaginação dos escritores.


São histórias de monges cruéis, de fantasmas, de almas do outro mundo, de barulho de correntes e grilhões, de pés que se arrastavam e de gemidos e gritos que cortavam o silêncio das noites, tudo isto cercado por paisagem sombria, labirintos, criptas de castelos amaldiçoados e mosteiros abandonados, num claro escuro tenebroso. Um clima de pesadelo, de opressão e ansiedade extrema, parecia estar permanente pairando sobre seus personagens, como se os espectros dos monges desterrados e banidos pelo Tudor, ameaçando os vivos, viessem a reclamar vingança.


Como a maioria dos autores góticos era de fé protestante, eles identificavam nos mosteiros católicos o símbolo da barbárie medieval e do pavor ao sobrenatural a ser estigmatizado e banido do solo pátrio. Serviu, pois. como instrumento da guerra teológica que ainda se travava entre as duas correntes do cristianismo.

Hábil em explorar a tensão e o perigo, o gênero começado por Horace Walpole (‘O castelo de Otranto’, 1764), seguido pela novela da senhora Carver (‘Os horrores da abadia Oakendale’, 1797), e pelo romance de Ann Radcliffe (‘Os mistérios de Udolfo’, 1794) e tantos outros mais que se seguiram até os começos do século XIX, encerrou-se com a publicação de ‘Melmoth, o errabundo’, de Charles Maturin, em 1815.


Tratava-se de histórias fantásticas, de assombrações que perduravam dos tempos medievais, narrativas que corriam de boca em boca nas sugestionáveis comunidades rurais e que precisavam ser expurgadas do imaginário do povo inglês por meio de romances aterrorizadores com função catártica.


Bibliografia

Brewer, Derek – English Gothic Literature. Londres: McMillan, 1983.

Hutchinson, Robert – Thomas Cromwell: the rise and fall of Henry VIII most notorius minister. Londres: Phoenix, 2005.

Marx, Karl – O Capital. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1986, vol. II.

Marius, Richard – Thomas More, a biography. Londres: Fount paperbacks, 1986.

Moorhouse, Geoffrey – The. last Office: 1539 and the dissolution of monastery.Londres: Weiderfeld&Nicolson, 2008.

Trevelyan, G.M – English Social History. Londres: Penguin Books, 1972.

Woodward, G.W.O. – Dissolution os the Monsatery. Londres; Pitkin Guides, 1985.


Fonte:História por Voltaire Schilling