13.12.10

Choque de civilizações

Introdução sobre o choque de civilizações

A religião tem um papel preponderante nos principais conflitos do mundo contemporâneo, mais importante do que as disputas entre os grandes sistemas político-ideológicos. Em vez do embate entre democracia liberal ecomunismo, que marcou boa parte do século 20 durante a Guerra Fria, emerge um confronto entre os sistemas sociais e culturais baseados noIslamismo e os fundamentados nas religiões judaico-cristãs. Essa ideia faz parte de uma polêmica tese que ganhou força no começo do novo milênio em função dos ataques terroristas do 11 de setembro de 2001.

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Chamada de "choque de civilizações", essa tese foi levantada e defendida pelo cientista político norte-americano Samuel Phillips Huntington em 1993, num artigo publicado na conceituada revista "Foreign Affairs". Num momento de otimismo do liberalismo, com o fim da União Soviética e o desmantelamento dos principais regimes socialistas e de consolidação da absoluta superioridade militar e econômica dos Estados Unidos, Huntington enxergou um horizonte pessimista, no qual haveria um declínio da hegemonia ocidental e a religião assumiria um papel até então reservado às grandes ideologias.

Para os defensores da ideia do confronto entre civilizações, o terrorismo internacional associado ao Islamismo que surgiu no início do século 21 serviu para confirmar a análise de Huntington, que foi considerada premonitória por ter sido escrita quase que uma década antes. Mas muitos estudiosos discordam dessa ideia. Os críticos da tese do "choque de civilizações" argumentam que há muitas imprecisões e contradições nas ideias de Huntington, a começar que não é tão simples assim definir o que são civilizações. Nas próximas páginas, descubra o que dizem os defensores e os críticos da polêmica tese do "choque de civilizações".
Quem foi Samuel Huntington

Nascido em Nova York, em 1927, Samuel Philips Huntington graduou-se pela Universidade de Yale, fez mestrado na Universidade de Chicago e obteve seu doutorado pela Universidade de Harvard. Especialista em política americana e internacional, relações internacionais e nas transformações modernizadoras da sociedade, Huntington trabalhou como consultor de várias agências governamentais norte-americanas, foi diretor do Instituto para Estudos de Guerra e Paz da Universidade de Columbia e diretor de vários centros de estudos da Universidade de Harvard. Suas pesquisas resultaram em vários livros sobre estratégias de segurança nacional, organizações transnacionais, governabilidade nas democracias, processos de democratização e comparações entre os governos dos Estados Unidos e da União Soviética, entre outros assuntos. Huntington morreu em 2008.

Huntington e a profecia do confronto entre civilizações

O conflito entre as grandes civilizações mundiais tomou o lugar dos confrontos entre nações ou ideologias no cenário das relações internacionais, segundo artigo escrito pelo cientista político Samuel Philips Huntington publicado na revista "Foreign Affairs" em 1993 (e depois desenvolvido no livro "O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial", de 1996).

Cruzadas
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Segundo Huntington, "a História da humanidade é a História das civilizações". Desde a civilização egípcia da Antiguidade até a europeia dos tempos contemporâneos, são as civilizações, concebidas como entidades culturais, que proporcionam as identificações mais amplas para os povos. As civilizações, no entanto, não têm limites estáticos já que os povos redefinem constantemente suas identidades culturais alterando as fronteiras de cada civilização, e apesar de durarem muito tempo, elas são mortais. Assim, ao longo da História, surgiram, se desenvolveram e morreram as civilizações mesopotâmica, egípcia, cretense, clássica (greco-romana), bizantina, mesoamericana e andina. Atualmente, existiriam as civilizações ocidental, islâmica, chinesa, japonesa, indiana, latino-americana e, provavelmente, uma africana abaixo do deserto do Saara.

Huntington destaca que, dentre todos os elementos culturais que definem uma civilização - como língua, valores morais, costumes e estilo de vida, instituições e uma auto-identificação subjetiva das pessoas - é a religião o mais importante deles. Tanto que as quatro maiores religiões mundiais - Cristianismo, Islamismo, Confucionismo e Hinduísmo - constituem, para ele, os alicerces das principais civilizações contemporâneas.

Os encontros e confrontos entre civilizações acontecem desde a Antiguidade, mas é na Idade Moderna que eles se tornam mais frequentes. A principal razão para isso é a ascensão da civilização ocidental (europeia), que surgiu no século 8 mas que a partir do século 15 inicia um processo mundial de conquistas e hegemonia, com a expulsão dos mouros da Península Ibérica, o início da era das grandes navegações, dos descobrimentos e do colonialismo, a Renascença, o Iluminsimo e aRevolução Industrial. Esses fatos levam a um processo de subordinação das demais civilizações - quando não da sua extinção, como foi o caso da andina e mesoamericana - à civilização ocidental, principalmente, segundo Huntington, em função do poderio militar dela.

Uma das consequências dessa hegemonia é que, no século 20, os principais sistemas político-ideológicos e econômicos que predominavam entre todas as civilizações - do comunismo ao liberalismo - eram produtos da civilização ocidental. Por outro lado, segundo Huntington, todas as grandes religiões mundiais, inclusive o Cristianismo, são produtos de outras civilizações que não a ocidental. Na visão do pensador norte-americano, o declínio das ideologias, cujo marco é a queda do Muro de Berlim em 1989, foi substituído pela ascensão da importância das religiões como elemento de identificação entre os povos de uma mesma civilização. Assim, os conflitos intracivilizacionais, como o ocorrido durante a Guerra Fria, baseados em disputas entre sistemas político-ideológicos inventados pela civilização ocidental, passam a ser entre sistemas religiosos e culturais inventados por outras civilizações.

É nesse contexto que se insere um conflito entre o Cristianismo, que predomina na civilização ocidental, e o Islamismo. Para Huntington, durante quatorze séculos as relações entre esses dois sistemas religiosos e culturais têm sido tempestuosas e marcadas por combates muitas vezes mortais por almas, territórios e poder, como mostraram as expansões muçulmanas sobre a Europa ou as Cruzadas cristãs em terras consideradas sagradas tanto pelo Cristianismo como pelo Islamismo. Huntington aponta que algumas características desses sistemas religiosos contribuem para esse confronto, como o fato de ambos serem monoteístas, universalistas e missionários, o que os impede de assimilar a divindade alheia, e por demandarem que seus seguidores vejam o mundo de forma dualista e tentem converter todos os não-crentes a sua única verdadeira fé.

Para Huntington, o recrudescimento desse conflito no final do século 20 ocorre devido à perda da importância das ideologias e a uma combinação de fatores, como o crescimento do número de jovens desempregados e descontentes que aderem a causas fundamentalistas, o ressentimento dos muçulmanos com as intervenções do Ocidente em seus países e a crescente intolerância entre muçulmanos e cristãos a partir dos anos 1980. Apesar da ênfase a um choque de civilizações entre a ocidental e a islâmica, Huntington mostra também que outras civilizações têm desafiado a hegemonia do Ocidente, principalmente a chinesa, e ele até arrisca uma conexão confuciana-islâmica para se opor à civilização ocidental. Na próxima página, saiba como alguns críticos da ideia do "choque de civilizações" analisam essa hipótese.

Choque de civilizações: uma tese reducionista?

As ideias de Samuel Huntington sobre o "choque de civilizações", notadamente no aspecto da preponderância da questão religiosa sobre a político-ideológica, sustentam-se em fatos históricos como os conflitos entre Israel e palestinos, que se deslocaram de uma disputa territorial para uma por terras sagradas e direitos definidos em escrituras religiosas.

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Mas, segundo os críticos da tese de "choque de civilizações", além dos acontecimentos históricos que usa para sustentar suas ideias terem sido convenientemente selecionados, há muitas imprecisões nos fundamentos desenvolvidos por Huntington, a começar por sua definição de "civilizações". Para eles, é difícil, por exemplo, considerar a existência de uma "civilização islâmica" em termos globais dada as profundas diferenças que existem entre árabes, persas, paquistaneses, indonesianos e turcos, além da separação existente entre muçulmanos xiitas e sunitas. A afirmação do cientista político norte-americano da existência de uma "civilização latino-americana", que apesar de ter suas origens na europeia dela se diferenciaria por contingências étnicas, religiosas e políticas, também é apontada como questionável e enfraquecedora dos seus argumentos e critérios para definirem as fronteiras das civilizações.

Mas, mesmo para seus críticos, as teses de Huntington foram vistas como um estímulo para discutir e repensar a política internacional. Elas se mostraram mais vigorosas, por exemplo, do que outra polêmica tese contemporânea, a do "fim da História", desenvolvida pelo pensador Francis Fukuyama, que previu pouco antes da queda do Muro de Berlim que ademocracia liberal havia triunfado como ideologia sobre o fascismo e ocomunismo. Enquanto a previsão otimista de Fukuyama seria contestada poucos anos depois por fatos como a guerra civil na Bósnia (1992-1995), esse mesmo acontecimento, que foi um conflito localizado e envolveu três grupos étnicos e religiosos - cristãos, ortodoxos e muçulmanos -, serviu de argumento para sustentar a ideia de choque de civilizações de Huntington. Para ele, a História não havia terminado e não haveria uma convergência internacional para uma único tipo de sociedade, com a universalização da democracia liberal, e um Estado mundial. Um choque seria inevitável, principalmente em função da ascensão das civilizações islâmica, baseada noIslamismo, e chinena, baseada no Confucionismo, e da oposição que elas fariam à ocidental.

As teses de Huntington mostraram-se muito convincentes para "explicar" uma série de fatos como os ataques terroristas da Al-Qaeda, os violentos protestos dos jovens muçulmanos contra a publicação de tirinhas consideradas ofensivas ao Islamismo feitas por um cartunista dinamarquês e as ondas de ataques de muçulmanos contra cristãos na Nigéria. Apesar desse fatos, um dos problemas da ideia de Huntington, apontado por estudiosos, é que ele previu que os conflitos entre grupos de diferentes civilizações tornariam-se mais frequentes que aqueles entre grupos da mesma civilização. Mas isso não tem ocorrido. Segundo levantamento do historiador e professor da Universidade de Harvard Niall Ferguson, dos trinta principais conflitos armados que surgiram após o fim da Guerra Fria, apenas um terço deles pode ser classificado de alguma forma como confrontos entre diferentes civilizações. A maior parte deles, no entanto, trata-se de guerras civis e conflitos étnicos, que muitas vezes assumem uma dimensão religiosa. Para Ferguson, o futuro parece mais propenso a guerras étnicas locais, na África, Oriente Médio e na Ásia, do que a um confronto global entre diferentes culturas.

Com sua tese do "choque das civilizações", Huntington deu à dimensão cultural uma importância que antes era reservada às dimensões ideológica, militar e econômica, e a colocou como determinante nas disputas internacionais. Para os opositores dessa ideia, além dela hierarquizar as civilizações e estabelecer relações insustentáveis entre etnia e cultura, ela falharia ao sustentar que os impulsos culturais coincidem com os políticos, fato que tornaria frágil a ideia de uma geopolítica das civilizações como ele imaginou.

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Fontes:
CHIAPPIN, José R. Novaes. O Paradigma de Huntington e o Realismo Político in Lua Nova Revista de Cultura e Política, n.° 34, 1994.
FERGUSON, Niall. The crash of civilizations in The Los Angeles Times, edição de 27/02/2006.
HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.