23.12.10

Rui Barbosa

Foto: Fundação Casa de Rui Barbosa

A extensa bibliografia a ele consagrada forma dois grupos antagônicos. De um lado biógrafos apaixonados – entre os quais se destaca Luiz Viana Filho. O historiador Américo Jacobina Lacombe considerava Rui "o maior líder do país, poliedro de luz e de devoção aos ideais". E Joaquim Nabuco louvava-o, dizendo que "levaria 20 anos a tirar o minério do seu talento, a endurecer e temperar o aço admirável do seu estilo". No entanto, numerosos são também os que o criticaram, desde o início do século. José Veríssimo não hesitou em excluí-lo da sua História da literatura. Agripino Grieco, Humberto de Campos, Lima Barreto, Roberto Lyra, Gilberto Amado, José Honório Rodrigues e Gilberto Freyre, entre muitos, castigaram o seu bizantinismo estilístico e o endeusamento da sua figura. Álvaro Moreyra disse, da sua oratória: "Essa mistura de classicismo e pernosticismo deleitava, impressionava, extasiava. Poucos compreendiam, muitos assistiam, todos aplaudiam".

Assim, atacado por alguns dos próprios colegas de Academia Brasileira de Letras – da qual foi presidente de 1908 a 1918 –, Rui soube defender-se, no discurso em que celebrava o seu jubileu: "Mas qual é, na minha existência, o ato de consagração às letras?... Não sei, de pronto, ou não me lembro. Tudo o mais é política, é administração, é direito, questões morais, questões sociais, projetos, reformas, organizações legislativas..."

Em 1964, o historiador Raimundo de Magalhães Junior lançou uma obra vigorosa, Rui, o homem e o mito, recolocando em exame toda a personalidade, o ideário, a carreira política e a atuação diplomática de Rui Barbosa. Trabalho iconoclasta, que provocou no país uma celeuma que só não foi maior porque outras preocupações, dramáticas e de cunho político, absorveram, nos anos 60, as energias de todos os segmentos intelectuais brasileiros.

Hoje, exageros e polêmicas findos, podemos talvez examinar com distanciamento e mais equilíbrio a figura de Rui, dentro de uma ótica que a relativize, compreendendo-a à luz das circunstâncias da sua época – um intelectual liberal, norteado por uma sede de justiça e liberdade, mas colhido nas contradições da sociedade da sua época. É o que faz o crítico literário Alfredo Bosi, quando diz: "Rui é todo o século 19... é um nome que testemunhou quase miticamente o modo de pensar das elites brasileiras que construíram a República".

Triste e enfermiço

Nascido em Salvador (Bahia) em 5 de novembro de 1849, Rui Barbosa foi, na infância e na adolescência, enfermiço, esquivo, extremamente tímido e calado. Seu pai, João José Barbosa de Oliveira, um médico que abandonou a carreira para tentar, sem sucesso, o jornalismo, a política e o empresariado, era de temperamento sonhador e instável. E incapaz de manter a família sem o auxílio da mulher, Maria Adélia, e de suas habilidades como doceira de qualidade. Rui nunca esqueceu a pobreza do início da vida, e parece ter guardado sempre um ressentimento, uma amargura, pelas dificuldades que teve de enfrentar.

Aos cinco anos sabia ler e escrever, e aprendeu, para grande admiração do mestre, análise gramatical, ordenação de frases e a conjugação de todos os verbos regulares. Era dotado de memória extraordinária e mostrava grande aptidão para línguas. Enquanto os outros meninos brincavam, o pequeno Rui empenhava-se nos estudos, buscando, legitimamente, adquirir os recursos para uma rápida ascensão social.

No curso de direito que iniciou em Recife, em 1866, e terminou em São Paulo, em 1870, foi contemporâneo de Castro Alves, Tobias Barreto, Afonso Pena. Segundo Luiz Viana Filho, Rui teria se sentido um tanto ofuscado pelos seus colegas poetas, pois "as musas não o favoreciam". Um poema de 1868, "Humanidade", em que tentava imitar seu grande ídolo, Victor Hugo, não foi bem recebido. A compensação veio-lhe através da oratória, no mesmo ano, pois ainda em São Paulo pronunciou, diante de José Bonifácio, um brilhante discurso que marcou o início de sua carreira política.

Dos 18 aos 25 anos sofreu três perdas, que o marcaram profundamente: a morte da mãe, Maria Adélia, em 1867. E em 1874 a do pai, a quem era muito ligado, e também a de uma noiva de 17 anos, Maria Rosa, tísica. Uma depressão profunda acometera-o em 1870, apenas terminado o curso jurídico em São Paulo. Os médicos falavam em "anemia cerebral" e prescreviam-lhe dietas rigorosas. Mas um médico português foi logo diagnosticando: "O seu mal é fome!" Realimentado e reanimado, o jovem advogado prosseguiu carreira. Logo mais o conhecimento de Maria Augusta Bandeira Viana, com quem se casou aos 26 anos, deu-lhe novo estímulo para lançar-se a uma carreira de trabalho concentrado, às vezes obsessivo – alternado com breves períodos de depressão e afastamento.

Sua extraordinária capacidade de verbalização, de caráter torrencial, levou ao ápice o brilhantismo de expressão, escrita e oral, tão em moda na sua época. Mas as características físicas daquele baiano verborrágico, feio, pequeno, de cabeça desproporcionada com o corpo, fizeram as delícias dos caricaturistas de seu tempo. Um desenho da época mostra-o como boneco de corda, com a legenda: "Corda garantida por 24 horas. Privilegiado pelo Governo Imperial".

O homem público

Voltando à Bahia em 1870, após o término do curso jurídico em São Paulo, Rui desligou-se dos companheiros de geração – que já se pronunciavam abertamente republicanos – para inserir-se no meio liberal/monarquista do pai. Era federalista extremado, mas pretendia "republicanizar" o Império, nos moldes do regime que julgava superior a qualquer outro: a monarquia constitucionalista da Inglaterra. Diz Alfredo Bosi que os dois arquétipos de sua visão de sociedade, o direito romano e a política inglesa, eram idéias "poucas e de escassa originalidade", mas que "reboaram formidavelmente, em virtude do talento verbal que as defendia".

Como maçom, e atuando como jornalista do "Diário da Bahia", Rui empenhou-se em propor e defender causas liberais, como a do "ventre livre", e opôs-se, em 1875, à campanha do serviço militar obrigatório, defendida pelo poeta Olavo Bilac. Em 1873 a chamada Questão Religiosa – que opôs Igreja e maçonaria, com participação enérgica e repressiva de dom Pedro II – mobilizaria os círculos intelectuais do país, colocando em discussão a problemática da separação entre Igreja e Estado, que seria defendida por Rui com todas as armas da sua eloqüência. Em 1877, traduzindo O papa e o concílio,aproveitou para criar um prefácio duas vezes maior do que o próprio texto do livro, e no qual simultaneamente condenava os bispos que haviam excomungado os maçons e o imperador que punira os prelados com pena de prisão. De passagem, fustigava o dogma da infalibilidade do papa, recém-declarado em Roma, e o "ultramontanismo" da princesa Isabel.

Na defesa de suas opiniões, muitas vezes Rui mostraria coragem. Principalmente ao enfrentar o poder militar. Num discurso de homenagem ao general Osório, ousava dizer: "O direito agora é quem sagra os heróis; não a conquista. A idolatria das espadas ambiciosas passou".

Como parlamentar, no seu estado natal e na corte, Rui manteve a mesma atuação. Em 1884 foi honrado pelo imperador com o título de conselheiro, em reconhecimento aos seus trabalhos sobre o ensino. Proclamada a República, foi logo chamado para a pasta da Fazenda, muito embora ele próprio se declarasse "um republicano do dia seguinte". Mas o período de sua gestão foi reconhecido como o pior, economicamente, da história do Brasil – seus esforços para dar ao país uma feição industrialista resultaram numa inflação descontrolada e num impasse caótico, conhecido como "o encilhamento".

De 1893 a 1895, opondo-se ao governo de Floriano Peixoto, teve de exilar-se. Foi um dos poucos que teve a coragem de enfrentar o tirano, impetrando um famoso habeas-corpus em favor do grande número de presos políticos, em abril de 1892. O jurista Levi Carneiro comenta: "O traço mais emocionante na argumentação de Rui é o da veemência dos ataques, o destemor implacável com os temerosos".

De Londres, onde se refugiou, Rui escreveu para um jornal do Rio uma série de "Cartas de Inglaterra". Numa delas defendia, antes de o escritor Émile Zola encetar a sua campanha, a inocência do capitão Alfred Dreyfus – francês, mas de origem judaica, vítima do sentimento anti-semita, este fora injustamente acusado de espionagem e condenado, em 1894, ao degredo na Guiana Francesa; Zola liderou o movimento que acabou por reabilitá-lo, em 1899.

Regressando ao país, Rui passou o resto da vida exercendo simultaneamente as carreiras jornalística, jurídica e política. Foi diretor do "Jornal do Brasil" e do "Diário de Notícias". Candidatou-se à presidência da República três vezes, sem sucesso. A "campanha civilista" de 1910 foi perdida em favor do marechal Hermes da Fonseca. No mesmo ano, tendo o marechal-presidente reprimido violentamente a Revolta da Chibata, Rui levantou novamente a sua voz e denunciou o massacre dos marinheiros do navio "Satélite", "espingardeados, sem culpa nem figura de processo, como animais hidrófobos e alijados ao abismo como as reses mortas de peste nos currais de bordo".

Incoerências marcaram, no entanto, sua carreira política. Numerosos são os que o atacaram pelo seu conservadorismo e reformismo. Em 1894 José do Patrocínio não hesitava em chamá-lo de "camaleão doido", por ter Rui se oposto ao indulto aos escravos que haviam atentado contra os senhores. Cobrada lhe foi também a indiferença em relação à situação dos operários – realmente tão precária no Brasil que chocou o ministro francês Georges Clemenceau, quando nos visitou, em 1910.

Águia de Haia

Foi porém pela sua atuação na II Conferência de Paz de Haia, em 1907, que Rui recebeu a maior consagração – ali teria deixado o grande orador baiano a sua marca de excelência, deslumbrando pela inteligência e tornando respeitado o nome do Brasil. A controvérsia sobre "a águia de Haia", no entanto, ferve até hoje: teria realmente sido tão extraordinária a participação de Rui, a ponto de provocar elogios extensos e unânimes na imprensa estrangeira? Ou, antes, não teriam sido essas notícias, muito bem pagas, e embelezadas e maximizadas nos jornais brasileiros, apenas um grande golpe publicitário montado pelo barão do Rio Branco, nosso ministro do Exterior?

Raimundo de Magalhães Junior, na obra citada, demole sistematicamente a glória de Rui, provando que as notícias sobre ele foram esparsas, críticas e sobretudo irônicas, na imprensa européia, até o aparecimento de artigos pagos, em jornais italianos e britânicos. E o historiador e diplomata Oliveira Lima diz, em suas memórias: "Enquanto no Itamaraty rufava o bombo, em Haia o chanceler, assumindo foros de empresário, apresentava a uma assembléia de sumidades o prodígio de uma águia cantante".

Que Rio Branco não poupava esforços nem dinheiro para o êxito da diplomacia brasileira, não há dúvida. A sua generosidade era objeto de críticas na imprensa, tornando-se corrente a expressão "Dinheiro haja, senhor barão!" Mas, numa visão de hoje, nada haveria de estranho, ou desonesto, nesse marketing que favorecia a nação – continua a ser feito em todos os países do mundo, de maneira institucional. Rio Branco, criado na Europa, sempre teve uma visão menos acanhada que a de seus contemporâneos brasileiros.

Os ataques diretos e pesados não faltaram, ainda em vida de Rui Barbosa. Gilberto Freyre identifica o "mito-Rui" como um fenômeno compensatório da nacionalidade, isto é, "uma vontade de ver que um nativo amarelinho, caboclo franzino e feio, brasileiro pequeno em tamanho mas grande em inteligência" fazia a Europa curvar-se diante do Brasil. Mas alguns depoimentos insuspeitos de contemporâneos de Rui parecem realmente confirmar o que o "mito" diz: que às chacotas generalizadas sobre o "senhor Ruy de Barboza" (ou "Mr. Verbosa", como maldavam outros), Ruy conseguiu em Haia fazer suceder uma profunda admiração.

A petulância de sua primeira apresentação causa espanto: ao iniciar um discurso de seis horas, o delegado brasileiro dirigiu-se à assembléia, perguntando em qual língua deveria falar, esclarecendo: "Eu tenho a felicidade de dizer que falo todas as línguas cultas, vivas ou mortas".

Membro da delegação brasileira em Haia, o diplomata Rodrigo Otávio de Menezes registraria: "Quando (Rui) começava a falar parecia ter soado a hora do recreio num colégio: a conversa generalizava-se e ninguém mais lhe ouvia a voz". Mas quando o pequenino baiano falante enfrenta o arrogante representante inglês, na célebre questão da representação igualitária das pequenas nações, diz o mesmo diplomata: "...Martens, ao lado de Rui, mantinha a cara amarrada e mostrava certo nervosismo. E Rui, pequeno, humilde, com voz sumida, que depois se elevou e tornou clara, começou a proferir esse discurso que foi, por certo, a peça oratória mais notável que a conferência ouviu e lhe proporcionou o seu momento de maior brilho intelectual".

Efusivamente cumprimentado pelos diplomatas estrangeiros, Rui ouviria o russo Nelidov dizer: "A América do Sul foi para mim uma revelação", e o norte-americano Brown Scott: "Eis o Novo Mundo que se faz ouvir pelo Velho". Era realmente a primeira vez que um país periférico ousava requerer das grandes potências paridade, na representação junto ao Tribunal Internacional de Arbitragem, que se pretendia criar. Instituído um "conselho dos sete sábios" para votar o assunto (todos representantes das grandes potências), era evidente que o Brasil seria derrotado. Mas uma idéia importante fora lançada, e frutificaria mais tarde.

É bem verdade que o desempenho diplomático de Rui em Haia tem o seu reverso: porque foram duas as posições políticas, absolutamente contraditórias, por ele defendidas. Nos primeiros dias da conferência ele usara sua eloqüência apaixonada para defender – por ordem de Rio Branco e do próprio presidente Afonso Pena – os interesses das grandes potências, na "questão Drago". A Venezuela sofria, desde 1902, por inadimplência, o cerco marítimo imposto pela Alemanha, pela Inglaterra e pela Itália. O Brasil, para não desagradar aos Estados Unidos, apoiou ostensivamente os grandes, e contribuiu para a derrota da doutrina de não-intervenção, defendida pelo ex-chanceler argentino Luis María Drago.

Cinco anos antes, o senador Rui Barbosa havia atacado, também ardorosamente, o procedimento das nações que cobravam militarmente suas dívidas, pois isso "constituía precedente extremamente perigoso para a soberania de todas as pequenas nações". Mas, como diplomata, seu dever era seguir estritamente as ordens do Itamaraty. E os que lhe cobram, até hoje, uma coerência política absoluta – que nunca teve – esquecem que nunca foi, ou se propôs a ser, herói de idéias libertárias. Foi antes instrumento de algumas delas, usou-as e desse uso resultaram coisas boas para a nação.

O mais certo seria aplicar a Rui o que ele próprio disse do escritor inglês Jonathan Swift: "Não esqueçamos que os grandes homens se constituem tanto dos seus defeitos quanto das suas virtudes".

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