18.1.11

O Brasil em manuais escolares: escrita e ensino da história em meados do oitocentos

Isadora Tavares Maleval1

Resumo:

O artigo tem como foco analisar os processos de escrita e de publicação de dois livros de história do Brasil voltados para o ensino da “mocidade” brasileira. Através dos objetos principais do estudo – o Epítome Chronologico de Historia do Brasil, escrito por Caetano Lopes de Moura e publicado em 1860, e do Epítome da Historia do Brasil de autoria de José Pedro Xavier Pinheiro, cuja primeira edição data de 1854 – comparados com outros da mesma categoria – como, no caso, o livro de José Inácio de Abreu e Lima, Compendio de Historia do Brasil de 1843 – tentar-se-á demonstrar a importância desse tipo de literatura no cenário oitocentista brasileiro, em termos de escrita e de ensino de história.

Palavras-chaves: Historiografia, Ensino de história, Século XIX.

Abstract:

Brazil in school manuals: writing and teaching in the mid 19th century.

This article focuses on the analysis of the process of writing and publishing two specific books addressed to the apprenticeship of the Brazilian youth: the Epítome Chronologico de Historia do Brasil, written by Caetano Lopes de Moura and published in 1860, and the Epítome da Historia do Brasil, written by José Pedro Xavier Pinheiro, published by the first time in 1854 – both compared to the book written by José Inácio de Abreu e Lima Compendio de Historia do Brasil (1843). We tried to show the importance of this type of literature in the XIXth century, in terms of History writing and teaching.

Keywords: Historiography, History Teaching, XIXth century.

O avanço da alfabetização, galgada, em certa medida, pela ampliação do material de leitura, foi um divisor de águas na história da humanidade. A instrução ia sendo pouco a pouco implementada como de vital importância para as sociedades, como forma de garantir a “civilização dos costumes e dos espíritos”.2 Tal fato ganha destaque, principalmente no século XIX, momento em que a preocupação com a criação e fortalecimento dos Estados nacionais estava unida, em muitos casos, com a ideia de “instruir para civilizar”.

Esse ideal fica perceptível no que diz respeito à própria construção da história como disciplina e profissão. Nesse sentido, apoiando-se em François Furet3, pode-se dizer que o século XIX foi o momento em que a história seria responsável por ensinar a “evolução da humanidade” e a “civilização”, sem esquecer que essa “marcha para o progresso” teria como artífice o Estado Nacional. A história, portanto, passou a ser a pedagogia do cidadão e a biografia da nação.

No Brasil, houve um momento crucial para a formação desses debates, após a década de 1830. A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a consolidação do Colégio Pedro II e os escritos de Varnhagen são exemplos da importância que essas questões alcançaram no Brasil.

Segundo Manoel Salgado, o IHGB traria, em sua fundação, a preocupação de escrever uma biografia da nação brasileira. Isso porque o Brasil tentava mostrar-se naquele momento como uma nação civilizada, e o projeto da escrita de uma história nacional seria um dos pressupostos trazidos da Europa para que uma nação fosse vista como tal.4 Em 1838, o Instituto foi inaugurado pela necessidade de se delinear um perfil para a nação brasileira, colocando para si a tarefa de desvendar o processo de gênese da nação, suas peculiaridades e, em última análise, produzir uma homogeneização da visão de Brasil, no interior das elites brasileiras. Foi, ainda, através do IHGB que a historiografia nacional nasceu, não em oposição à colonização portuguesa, mas justamente em favor dela. A nação propagada pela história empreendida pelo Instituto se reconheceu enquanto continuadora de uma tarefa “civilizadora”, que teria sido iniciada pela colonização portuguesa.

A criação do Imperial Colégio de Pedro II era outro elemento institucional do processo civilizatório geral, que estava sendo desenvolvido pelo Segundo Reinado. A instrução pública passou a ser percebida como uma das bases para a construção da ideia denação. Após as lutas de independência, a ausência de um sentimento de pertencimento nacional exigiu da monarquia um esforço no sentido de construir essa nação. E essa tarefa foi iniciada também através da educação. Nesse sentido, os professores assumiram o papel de agentes do governo, enquanto, especificamente, o ensino de história constituiu-se na base para a fundamentação da cultura do pertencimento. Pertencimento este tanto com relação ao Brasil, como em relação à civilização ocidental europeia.5

É de notável importância o papel atribuído à história na formação erudita garantida pelo Colégio Pedro II. No início de 1849, foi criada a cadeira de História do Brasil, primeiro ministrada por Gonçalves Dias e, depois, por Joaquim Manuel de Macedo. Havia, portanto, uma demanda por livros que pudessem suprir essa disciplina.6Tornava-se importante escrever uma história que pudesse ser transmitida àqueles que deveriam se tornar os futuros cidadãos ativos do Império do Brasil. Assim, através da escrita de uma história nacional, voltada para um público delimitado – a mocidade brasileira – seria possível abordar de forma inteligível os propósitos claros de associar o ensino da história à construção de um ideal de Brasil como “nação civilizada nos Trópicos”.7

Escrever manuais de história para a mocidade brasileira passou a ser uma tarefa de fôlego, que, caso bem empregada, garantia notoriedade ao autor. Isso fica claro nas discussões que ocorriam no Instituto Histórico e Geográfico do Brasil em torno da aprovação de alguns livros, em detrimento da negação de outros. Escrever esse tipo de história era algo examinado de perto pelas autoridades imperiais, sendo isso compreensível, visto que constituía uma tarefa importantíssima para aqueles que viviam naquele momento.

Ora, um manual desse porte é, antes de tudo, um livro. Um livro que possui uma história de produção, editoração e publicação. Um livro que possui propósitos claros com relação a um público leitor específico, e que está em diálogo direto com outros livros – consequentemente, outros autores e leitores.

Segundo Roger Chartier, a tarefa do historiador é reconstruir as variações que diferenciam os textos nas suas formas materiais, discursivas e as diferentes leituras interpretativas advindas desses discursos8. Nesse sentido, o métier deveria se preocupar em garantir a apreensão dos três elementos que constituem esse contexto: o livro (sua materialidade), o texto (sua argumentação) e a leitura (sua interpretação e apreensão pelos leitores).

Entretanto, desde já desloca-se o foco para o primeiro polo dessa tríade. O público leitor, já explicitado, pode ser vislumbrado apenas como uma “classe” própria – de estudantes ou professores do Segundo Reinado – mas a leitura que tiveram desses textos, sua interpretação, e a forma como se apropriaram9 de suas ideias será, nesse momento, uma lacuna. Também o texto e as práticas discursivas envolvidas em sua composição são aspectos que não serão desenvolvidos neste trabalho.

Através dos objetos principais do estudo – os livros de Caetano Lopes de Moura e de José Pedro Xavier Pinheiro – comparados com outros da mesma categoria – como, no caso, o livro de José Inácio de Abreu e Lima – tentar-se-á dar conta de um pouco do livro, neste momento, enquanto materialidade, fruto de trabalho árduo por parte do autor e dos seus editores.

O primeiro exemplo será o compêndio de autoria de José Inácio de Abreu e Lima. Nascido em Pernambuco, em 1794, Abreu e Lima teve uma vida muito conturbada. Da formação militar, adquirida através do curso feito na Real Academia Militar, passou a prisioneiro político (devido ao envolvimento de seu pai, o “Padre Roma”, com a Revolução Pernambucana), sendo exilado. Acabou combatendo pela independência das colônias espanholas na América (por isso passou a ser chamado de “General de Bolívar”). Quando finalmente conseguiu voltar para o Brasil, em 1832, passou a desempenhar o papel de jornalista polêmico, publicando em jornais que ele mesmo editava suas opiniões a respeito, principalmente, do ex-imperador D. Pedro I, de quem era adepto, depois de sua partida para Portugal. Para Abreu e Lima, a abdicação foi a causadora da maioria dos problemas do Brasil, e o resgate da figura do ex-Imperador seria de central importância para garantir a unidade do Império. Foi também autor de uma série de livros, professor de matemática, editor de pasquins e sócio do IHGB, onde seus trabalhos nem sempre foram bem aceitos. Morreu em sua terra natal, Pernambuco, em 1869.10

O Compendio da Historia do Brasil foi publicado, em 1843, pelos Laemmert. Foi levado a cabo através de escolhas de temas e de recopilações. A composição não é inteiramente original e o autor chega mesmo, em algumas partes, a copiar outros livros de história, sobretudo, o História do Brasil, de Beauchamp (1817) – o que garantiu grande polêmica com Varnhagen.11

Abrindo o compêndio, verifica-se uma dedicatória feita pelo autor ao Imperador Pedro II:

Ao Muito Alto, muito poderoso
SENHOR D. PEDRO II
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil
ODC
Este Compêndio de História Pátria
Em sinal de profundo respeito e da mais
Pura afeição e lealdade
Seu reverendo súdito
José Inácio de Abreu e Lima12

Abreu e Lima dedicava o Compendio à figura que considerava vital para o reerguimento do Brasil, enquanto nação forte. Desde a partida de D. Pedro I para Portugal que o pernambucano percebia o enfraquecimento do Brasil, agravado no período regencial. Por isso, envolveu-se em debates sobre o resgate da figura do primeiro Imperador, visando, sobretudo, a retomada da obra iniciada por ele, em 1822.13 Abreu e Lima foi logo defensor da Maioridade daquele que viria a ser o segundo Imperador. A busca pelo prestígio de sua obra é, em parte, traduzida nesta pequena dedicatória, na qual se coloca como o “reverendo súdito” de Pedro II. Essa busca por legitimidade acabou definindo também, em certa medida, a vida de Abreu e Lima, que sempre tentou colocar-se à disposição do Segundo Reinado, fosse como militar ou como jornalista.14

Tais questões ficam perceptíveis na própria trajetória do livro. Em um primeiro momento, o Compendio teve aceitação, talvez, devido à falta de existência de um livro tão voltado para o propósito de ser um manual escolar como o de Abreu e Lima – algo que pode ser também atribuído ao esforço de seus editores. Desse modo, ele foi utilizado no Colégio Pedro II durante doze anos, quando acabou substituído por Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo, na época, professor da disciplina na instituição.

Apesar da utilização do livro de Abreu e Lima em suas aulas, Macedo chegou a negar algumas qualidades do Compendio, em 1854, em uma sessão do IHGB, ao observar a falta de um bom livro de história da pátria. Talvez a negação da obra de Abreu e Lima deveu-se menos ao seu caráter didático, e mais pela sua concepção antiga de história, fato já discutido por Varnhagen, em 1844.15 Para Varnhagen, Abreu e Lima escolhera “compilar”, adotando critérios antigos ou clássicos de escrita da história, e não utilizando como base a noção de verdade a partir do critério de prova, associado ao método crítico dos testemunhos, característico da noção moderna de história.

Voltando ao Compendio, outro aspecto toma relevância capital: o papel dos editores. Os Laemmert publicaram duas edições do mesmo livro no ano de lançamento. A primeira edição, que continha dois tomos e muitas notas de pé-de-página, além da transcrição de muitos documentos, acabou substituída por uma segunda edição que tinha apenas um tomo. Muita coisa foi “enxugada”, sobretudo, as estampas, retratos e documentos que acabaram sendo suprimidos nessa segunda edição de 1843.16

O principal motivo para essa transformação do Compendio explica-se, segundo Selma Rinaldi Mattos, pelo fato de os donos da Livraria – e Tipografia – Universal desejarem que este livro se tornasse mais acessível ao público leitor, visto que um livro com menos páginas e quase sem figuras seria mais barato para ser produzido e, consequentemente, seria mais vendido.17

Além disso, a quantidade de transcrições de documentos contidos na primeira edição acabava por se afastar um pouco da ideia central da formação do compêndio: a de que ele seria um manual, cujo caráter de resumo fazia com que fosse desnecessária a quantidade de documentos, notas de rodapé e mesmo de gravuras ao longo do texto. O interesse dos Laemmert estava voltado para o público escolar, isso era evidente. A busca dos editores era atingir as escolas e a primeira edição parecia fugir um pouco dessa concepção. Tudo isso não deixando de levar em consideração que os editores intencionavam ampliar o número de leitores do livro de Abreu e Lima.

A descoberta de que os livros escolares poderiam ser fontes de enriquecimento dos tipógrafos e livreiros do oitocentos parece também estar no foco dessa questão. O maior concorrente dos Laemmert, nesse período, era B. L. Garnier, por muito tempo considerado o maior editor de livros voltados para a instrução. Segundo o historiador Laurence Hallewell, a Garnier concentrou-se na literatura e nos escritores franceses que tratavam da ciência popular, mas também chegou a publicar obras de história, como a História do Brasil, de Robert Southey e os seis volumes da obra de Pereira da Silva, História da fundação do Império do Brasil. Apesar disso, Hallewell identifica nos Laemmert o interesse maior, no campo da editoração, pela história (e pela ciência). Publicaram, entre outros, a História geral do Brasil, de Varnhagen.18

Embora Garnier tenha sido o principal editor de livros escolares19 até o aparecimento de Nicolau e Francisco Alves, Laemmert também publicou alguns livros voltados para esse fim. Além do Compendio de Abreu e Lima, destaca-se no campo do ensino de história o livro de José Pedro Xavier Pinheiro, Epítome da História do Brasil, cuja primeira edição data de 1854, mas que possuiu muitas reedições. Em cada reedição, o autor abordava os fatos consequentes, como no caso da quinta edição do livro, de 1873, Epítome da História do Brasil desde o seu descobrimento até a conclusão da Guerra do Paraguay.

Nascido na Bahia no ano da Independência do Brasil, Xavier Pinheiro era habilitado com o curso completo de humanidades, além de membro do Conservatório Dramático Brasileiro, jornalista, tradutor da Divina Comédia para o português, oficial da Secretaria dos Negócios da Justiça do Império e da Secretaria do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (MACOP). Foi também autor de pelo menos duas obras de cunho didático: o já mencionado Epítome de história e um compêndio sobre gramática portuguesa, que fora escrito por volta da década de 1860, sem ter sido, contudo, publicado.20

Despertado para a importância das letras, Pinheiro parece ter percebido o diferencial produzido pela educação. Isso pode ser melhor verificado a partir do prólogo feito aoEpítome da Historia do Brasil, intitulado “Ao leitor”. Nele, Pinheiro demonstra a qualidade emancipadora da educação, necessária a qualquer sociedade que se queria civilizada. A educação deveria ser, dessa forma, matéria consumida por toda a população. Contudo, haveria nuanças de acordo com as hierarquias sociais vigentes. A proposta não era subverter a ordem, muito pelo contrário – era perpetuá-la através do diferencial produzido pela civilização dos costumes. No caso da história, por exemplo, seria interessante dar os fundamentos aos alunos para que estes pudessem conhecer mais o país a que passariam a venerar, e que seria o local onde desempenhariam seu papel social. Citando Xavier Pinheiro:

A instrução, pois, é pão que cabe a todos os membros do corpo social, qualquer que seja a tarefa cometida a cada um sobre a face da terra. Assim como a vida do corpo há mister o alimento, assim a ciência, sob qualquer de suas formas, é essencial à vida do espírito.
Nenhum indivíduo está dispensado desse preceito. Por humilde que seja a condição em que haja nascido, deve esmerar-se por dar ás suas faculdades novas forças, para desempenhar a sua missão na vida terreal, e corresponder á alteza de sua categoria de ser imortal.
Daí se deriva para os regedores das nações o dever de facilitar quanto seja ocasionado à observância d’essa regra insculpida por Deus na mente humana, recomendada no livro sublime da Redenção, quando ensinou que o homem se alimentasse de doutrina.
Assim vem a caber a todos o pão do ensino e da doutrina, a uns mais, a outros menos, conforme o mister a que se hão dedicado, segundo as condições do caráter que estão representando sobre a cena do mundo.21

Verifica-se através de documentação encontrada no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, um preâmbulo para a entrada do livro de Xavier Pinheiro no espaço de publicação dos Laemmert, no qual se descortinam algumas tensões inerentes ao próprio ato de aceitação (ou não) de obras desse nível, primeiro passo para a entrada desse tipo de livro nas tipografias e editoras e, posteriormente, no mercado livreiro. O ensino público do Município da Corte, centro político e administrativo do país, deveria ser matéria de destaque. Por isso, autores que desejassem que seus livros fossem publicados já com a certeza de que seriam utilizados nas salas de aula deveriam mandá-los ao Conselho de Instrução Pública, convocado pela Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte (IGIPSC), então presidida por Eusébio de Queirós.22 O livro de Xavier Pinheiro seguiu esse caminho antes de poder ser publicado no Rio de Janeiro. A obra já havia sido publicada e utilizada no ensino de sua terra natal, a Bahia, em 1854, mas, passando a morar no Município da Corte, fazia sentido que quisesse tê-la também nos circuitos do mercado editorial fluminense. Até em função da maior notoriedade garantida ao autor por ter um livro seu sendo utilizado no centro do país.

Xavier Pinheiro mandou seu livro para ser avaliado pelos membros do Conselho já mencionado, tendo em vista tornar sua obra parte do conjunto de livros destinados àmocidade brasileira:

Tenho a honra de trazer à presença de V. Exa o meu opúsculo intitulado – Epítome de História do Brazil – que, depois de ter sido aprovado pelo Conselho de Instrução Publica da Bahia e como tal impresso e distribuído às aulas de ensino primário, foi amplamente refundido e acrescentado.
Apresentando à V. Exa este humilde trabalho, é propósito meu pedir-lhe que mande proceder aos competentes exames e verificar se por ventura acha se acomodado ao fim a que desde seu princípio foi destinado, e a que ainda agora parece-me aplicável, isto é se merece entrada nas escolas de primeiras letras. Não levanto mais alto as minhas aspirações: o plano, em que delineei e executei o meu livro, não o torna apropriado a mais do que à instrução dos meninos.23

Posteriormente, o livro seria aceito pelo Conselho e poderia ser publicado para ganhar, então, o mercado a que era destinado. Os Laemmert acabaram sendo os responsáveis por levar essa primeira tarefa a cabo, assim como o tinham feito anos antes com o livro de Abreu e Lima.

As intenções editoriais dos Laemmert acabavam por se casar com o movimento já aqui citado de constituição dos Estados nacionais modernos. Quem dá a pista é Selma Rinaldi de Mattos:

À semelhança das “Nações civilizadas”, também no Império do Brasil a constituição de um corpo político moderno, assim como dos sujeitos que ele contém, pressupunham a “escola moderna”, e tudo aquilo que lhe diz respeito, aí incluídos os manuais escolares – ou seja, compêndios para a instrução pública.24

O empenho dos editores do Compendio da Historia do Brasil e do Epítome da História do Brasil não deixava, portanto, de estar na preocupação central dos projetos nacionais em vigor no século XIX. O ideal de nação casava-se com o de uma educação fortalecida, nesse caso, estabelecida através do ensino da história pátria. Mais do que isso, era necessário ao cidadão dessa nação perceber o lugar que esta ocupava no cenário de todas as outras nações. Essa tarefa estava presente no ensino da história e deveria ser colocada em sala de aula a partir da utilização de obras formadas com esse intuito.

José Pedro Xavier Pinheiro foi categórico a esse respeito na primeira parte de seu livro. Nessa passagem, a educação era vista como mola propulsora da nação e a história – junto com a geografia – como de importância categórica para conseguir chegar a esse fim:

Em todo o programa regular de instrução, que seja distribuída em estabelecimentos mantidos às custas do erário, quer prestem-na os institutos estipendiados [sic] pela bolsa dos particulares, o ensino da historia e geografia deve ser cuidadosamente compreendido. É do interesse do Estado que a mocidade conheça quanto se refere ao seu país, os acontecimentos de que foi teatro, as mudanças que sofreu, sua organização social no rodear dos séculos, como a civilização começou a ser nele um fato visível, como cresceu e se acrescentou, que lugar ocupa no mapa das nações, que forças possui para considerar-se membro ativo e proveitoso do gênero humano. Desta verdade se hão convencido os povos que hoje em dia podem ser apresentados como modelo à imitação. Todos têm inserido nos seus planos de estudos a obrigação de esclarecer o entendimento da juventude com lições tiradas de seus anais que lhe digam o que há sido e o que é a sua pátria.25

Nesse sentido, a produção de livros “elementares” voltados para a educação e, em específico, para o ensino da história do Brasil deveria ser estimulada.26 Em comparação com os países “modelos”, no Brasil esse tipo de publicação ainda deixava muito a desejar. O propósito de livros como o de Abreu e Lima e o de Pinheiro deveria ser, dessa forma, adotado não só pelo campo editorial, mas pela própria política imperial como um todo, conforme alertava Pinheiro:

[...] certo desejará ver as nossas aulas de primeiras letras abastecidas d’esses meios de estudo em maior soma do que até o presente. É, pois, de grande conveniência animar a composição de livros que provejam essa necessidade, aplicando os meios que estão em voga no mundo civilizado, estimulando pelas mercês honoríficas ou pelas vantagens pecuniárias o apuro nesse gênero utilíssimo de feituras literárias.27

Apesar de, no caso individual de Xavier Pinheiro, não ter ocorrido propriamente o que ele caracteriza como “estímulo pelas mercês honoríficas”, visto que ele não teria recebidos maiores benesses imperiais, não estava também tão longe disso, tendo em vista que ganhou um prêmio pela aceitação de seu epítome.28 Além disso, ele não deixava de estar no interior do aparelho estatal, já que era um funcionário público, sendo daí que retirava seu sustento, inclusive, para poder escrever e exercer outras atividades para além de seu ofício formal. Segundo José Murilo de Carvalho, o emprego público “[...] era procurado sobretudo como sinecura, como fonte estável de rendimentos. A maioria dos escritores da época, por exemplo, sobrevivia à custa de algum emprego público que deles exigia muito pouco”.29

Por outro lado, há mais um exemplo de que a política cultural do Segundo Reinado não ignorava esse tipo de apelo – o de garantir “mercês honoríficas” aos autores de livros destinados ao ensino.

Esse foi o caso de Caetano Lopes de Moura, autor de Epítome Chronologico da Historia do Brasil.30 Nascido no dia 7 de agosto de 1780, na Bahia, Moura viveu a maior parte de sua vida fora do Brasil e morreu na França. Atuou como ajudante de cirurgião na Legião Portuguesa, formada por oficiais portugueses que se incorporaram ao exército francês31 e foi tradutor de uma série de obras da literatura inglesa e francesa, como os romances de Walter Scott e de La Rochefoucauld. Em determinado momento de sua trajetória, passou a receber mercês do Imperador Pedro II, cuja relação foi tão próxima que chegou mesmo a escrever uma autobiografia a pedido do mesmo. Essas mercês financiaram sua carreira de pesquisador em muitos arquivos europeus, coletando dados relacionados ao Brasil. Tornou-se sócio-correspondente do IHGB, para onde enviava suas pesquisas. Estas contribuíram, também, para outra atividade que exercia: a de autor de livros para uso da mocidade brasileira.

A partir dessa brevíssima biografia, percebe-se que Caetano Lopes de Moura, cujoEpítome Chronologico da Historia do Brasil não chegou a ver em vida ser publicado, tivera provas de que no Brasil havia a preocupação em “aplicar os meios em voga no mundo civilizado”, estimulando esse tipo de produção literária, parafraseando José Pedro Xavier Pinheiro, tendo em vista que recebeu nos últimos anos de sua vida benesses do Imperador para financiar suas pesquisas, o que deve ter não só colaborado para a feitura do epítome, como também este tipo de mercê não deixava de proporcionar uma tranquilidade maior para o escritor poder efetivar a escrita do mesmo.

Caetano Lopes de Moura viveu boa parte de sua vida na Europa, onde morreu. Portanto, publicou seus livros todos lá e, em sua maioria, pela casa Aillaud.32 Entre estes, muitas traduções para o português,33 já assinaladas, mas também livros “científicos”, como o já citado Diccionario geographico, historico e descriptivo do Império do Brasil, de autoria de J. G. R. Millet de Saint-Adolphe, publicado em 1845. Além disso, a editora publicou mais de trinta trabalhos de tradução de Moura.34 A última publicação de Lopes de Moura foi feita também pela Aillaud, sendo, justamente, o Epítome, em 1860.

Essas cifras fizeram parte da mencionada relação profissional entre Caetano Lopes de Moura e a Livraria Aillaud. Nascido em Portugal de pai francês e mãe portuguesa, Jean-Pierre Aillaud foi cônsul de Portugal em Caen. Seu estabelecimento, a Livraria Aillaud, foi fundada em 1806 e acabaria sobrevivendo ao próprio fundador, que morreu em 1852. Segundo Hallewell, Aillaud foi um dos responsáveis, junto com Bossange, por uma sociedade no Rio de Janeiro, que possuía como um dos representantes – da parte de Bossange – ninguém menos que Eduard Laemmert.35 Mostras de que as trajetórias desses indivíduos não deixavam de se cruzar no emaranhado que ainda unia os dois lados do Atlântico.

Através da autobiografia escrita por Caetano, é possível obter ter algumas pistas acerca da política editorial do período e, sobretudo, sobre a forma como Aillaud fazia os seus negócios:

Apesar desse elogio[elogio feito pelo Desembargador Tristão da Cunha Portugal sobre a tradução que Caetano fez do “Talismã” de Walter Scott], avaliou o Aillaud a minha tradução como avaliava as demais, não conforme a propriedade e valentia das expressões, mas sim segundo o número de letras, que tal era a bitola por onde ele regulava, senão o merecimento da tradução, o dinheiro que por ela devia dar.36

Caetano demonstra aí, inclusive, certa antipatia pelo modo como Aillaud fazia os pagamentos pelos trabalhos a serem publicados. Talvez pela vontade de ser pago “pela valentia das expressões”, por seu bom português e pela qualidade de sua tradução, e não somente pelo “número de letras”. O fato, porém, é que, naquele momento, o “mulato baiano” não tinha outro recurso senão o de “viver da pena”37, primeiro como tradutor e depois com obras próprias, em sua maior parte, de caráter didático para uso da mocidade brasileira, e aceitar a forma de fazer negócio do então seu editor.

Desse modo, as obras de Caetano Moura se enquadraram com perfeição na linha editorial da Livraria Aillaud. Ali eram publicadas obras didáticas, livros para o entretenimento da mocidade, obras de caráter utilitário, entre outros gêneros. Costumava também publicar autores clássicos da língua portuguesa e muitas traduções para esta, muitas delas feitas por Caetano Lopes de Moura.38

Mesmo após a morte do fundador, a Aillaud continuou a editar e publicar outras obras de Caetano. No caso, depois de 1852, só chega a publicar duas obras desse autor, devido ao fato do próprio estar “levando uma vida mais folgada”,39 sem muitas traduções ou mesmo trabalhos próprios: a nova edição revista e atualizada do Tratado de geografia universal, física, histórica e política, de A. Balbi, e o Epítome Chronologico de História do Brasil.

O papel dos editores da Aillaud se fez sentir neste último livro. Foram eles que dedicaram o Epítome ao Imperador do Brasil, D. Pedro II:

Um Resumo da História do Brasil, escrito por um Brasileiro, para uso da mocidade brasileira parece que de justiça, Imperial Senhor, devia ser posto debaixo da Proteção e Amparo de Vossa Majestade Imperial, do Monarca Ilustrado, que põe toda a sua gloria em editar, como é patente, a nação, cujo governo, para felicidade dela, foi Deus servido confiar-lhe...40

O ato de dedicar uma obra a um soberano era, como já foi informado, de extrema importância para uma sociedade cujos valores ainda estavam, de certa forma, calcados em práticas reminiscentes de uma sociedade hierarquizada, próxima aos moldes do Antigo Regime. Nesse caso, a dedicatória não só afirma a importância do livro, como indica também a relação deste para com o Império do Brasil, fato que não podia deixar de satisfazer Pedro II. Todas essas questões ganham especial particularidade à medida que se recorda que Caetano Lopes de Moura, nos anos finais de sua vida, vivia na Europa através das mercês concedidas pelo próprio D. Pedro II.

Ainda com relação à dedicatória feita ao Imperador, no início do Epítome, fica clara também a articulação do conceito de nação com o de história, segundo a qual esta seria responsável por garantir o aprendizado por parte da mocidade daquilo que estava sendo construído como Brasil. Era através desse resumo da história que os estudantes poderiam conhecer o panteão de heróis brasileiros, responsáveis por grandes feitos que teriam, ao fim e ao cabo, contribuído para a formação do Brasil. Quem sabe, através do ensino da história adquirido pela leitura do Epítome, os alunos poderiam até imitá-los.41

Dessa maneira, o livro devia ser visto como uma obra à altura da instrução pública dos futuros cidadãos ativos do Império. A mocidade teria, através do ensino da história do Brasil ministrado por ele, condições de tornar-se, futuramente, a elite política do Brasil imperial. E, por isso, o Imperador estaria ao lado dessa empreitada, visto que era o próprio “editor” da nação brasileira, segundo a dedicatória.

O Império do Brasil era, em meados do século, um corpo político já formado e em vias de consolidação. Perpetuar valores nacionais nesse momento era a tônica, o que pode ser demonstrado pelos vários exemplos já anteriormente citados. Assim, atentar para a escrita de livros de história voltados para o ensino não poderia deixar de ser preocupação dos dirigentes imperiais, conquanto essa escrita tivesse como objetivo não só narrar o advento da nação brasileira e sua constituição, como também deveria ser responsável por civilizar os leitores. Tal objetivo seria possível através de artifícios dos autores, por meio de escolhas com as quais poderiam tratar da fundação da nação a partir de diferentes enfoques – ou através da junção das três raças ou pela proeminência do português colonizador como aquele que trouxe a civilidade.

Escrever a história do Brasil era narrar acontecimentos, vidas e intenções, responsáveis por formar um todo coerente, uma mescla, um povo. Ensinar a história do Brasil era formar cidadãos que tomariam consciência dessa unidade – palavra tão cara ao Segundo Reinado.

Fonte: http://arshistorica.ifcs.ufrj.br/arshistorica01_a08.htm