24.2.11

A caminhada dos guaranis


MARCOS FAERMAN

Afirmam relatos antigos que entre os séculos 17 e 18 uma orquestra formada por índios guaranis e dirigida por jesuítas espanhóis interpretou peças de Vivaldi em cortes européias - para espanto, principalmente, dos defensores da idéia de que os nativos da América não tinham alma. Alguns escritores e intelectuais da Europa viram na chamada República dos Guaranis - ou Missões jesuíticas do Paraguai (1610-1767) - a encarnação histórica da Utopia, de Thomas Morus. Até Voltaire se rendeu à grandeza das construções daquele território, que terminariam arrasadas pelos exércitos de Portugal e Espanha.

Como tantos episódios dos presumidos 5 mil anos do povo guarani, as Missões deixaram ruínas e polêmicas, que o tempo não diminui nem esclarece. No filme República guarani, documentário do cineasta Sílvio Back, o historiador e antropólogo francês Maxime Haubert afirma, por exemplo, que "os jesuítas viveram 150 anos e até mais entre os índios e não deixaram praticamente nenhuma descrição sobre os seus costumes. A explicação é muito simples: para eles, os costumes indígenas eram superstições que haviam sido ensinadas aos índios pelo Diabo. Eles pensavam, de maneira muito ingênua, que com o batizado exorcizavam os índios de suas superstições, e esses costumes desapareceriam para sempre".

Na aldeia guarani do Rio Silveira, litoral norte de São Paulo, o jovem cacique Adolfo, ou Verá, diz que conhece essas histórias, que escutou de "avós muito antigos". "No tempo do descobrimento", diz ele, "padres jesuítas queriam catequizar para dominar os índios. Ali, nas Missões, fazem fronteira Argentina, Brasil e Paraguai. Mas antigamente não havia fronteiras. E, por nós, até hoje não haveria. A história certa é que os reis mandaram massacrar os índios. Se fala em descoberta, mas a palavra certa é invasão. Outra coisa certa é falar em 500 anos de resistência dos índios. E, hoje, o índio só vive em liberdade na sua aldeia."

Fábio Martins Villas, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que trabalha em Aracruz, no Espírito Santo, com uma pequena comunidade guarani, explica a visão que a entidade tem, hoje, das Missões: "Não podemos deixar de analisar o contexto da época, e para aqueles tempos as Missões eram algo inovador. Os jesuítas perceberam que os indígenas tinham nações organizadas, com um sistema social mais próximo àquilo que o catolicismo pregava do que as próprias sociedades européias. Então, os jesuítas tomaram uma posição contra o colonizador e criaram uma espécie de cordão de isolamento para evitar a dizimação dos índios. Mas eles estavam convencidos de que a salvação passava pela conversão. Esse foi um fator de destruição dos guaranis, pela descaracterização de sua cultura".

Num livro chamado Canto de morte kaiowá são recolhidas narrativas de vida com as técnicas da história oral e nelas aparecem, em muitos depoimentos, problemas que envolvem a penetração das seitas protestantes numa área do Mato Grosso do Sul em que vivem 8 mil guaranis, 80% do grupo caiová, outros do grupo nhandeva.

Tal situação é apontada, por exemplo, por Nenito Nhanderu, que vive na reserva de Dourados (MS), onde se deu, nas últimas décadas, uma explosão econômica que estaria ilhando os guaranis numa região para eles tradicional - mas cada vez mais hostil. Mesmo em tal contexto o número de índios teria crescido, e, segundo o Cimi, cerca de 8 mil guaranis estariam sufocados num território de 3,5 mil hectares.

Apesar dos 70 anos, Nenito não se diz exatamente um nhanderu (em guarani, "grande pai", "Deus" ou, neste caso, "pajé"), mas alguém dotado de menos poderes, "um rezador guarani". Ou, como ele diz mais explicitamente: "Se alguém fica doente, vem para cá... se tem dor de barriga... se está machucado... vem, e eu curo com reza e remédio do mato... mas a gente não reza só porque está doente, isso, não! Rezador é também ajudante do nhanderu, que é um pajé muito poderoso. Um ajudante de nhanderu trabalha para aprender a rezar direito. (...) Nós, os nhandevas, temos que rezar, e muito... eu, quando estou triste, vou rezar... me concentro e faço minhas orações quietinho... quando vou ver, a tristeza já correu... Agora, tem pressão demais em cima do índio!... É por isso que acho que tem que voltar para a natureza, para os nhanderu guaranis. (...) Um nhanderu do Paraguai foi preso... Judiaram muito dele, prenderam e não sabiam quem ele era... Depois de ter apanhado, ele levantou e foi rezar... rezou, rezou, e de seu jeito, que só ele sabia... Logo começou a levantar poeira, tudo escureceu... muitas casas e telhados foram quebrados... uma confusão danada, com gente caindo, se machucando... Relampejou em todo o céu e, quando passou, foram ver o nhanderu na cadeia, e ele estava morto. (...) Os nhanderu têm sido muito atacados... já faz tempo que os brancos têm tentado tirar os nhanderu da nossa tradição... principalmente as igrejas dos brancos, que não gostam deles e têm feito tudo para tirá-los da gente... Não são só as igrejas novas, não... não são só as pessoas da igreja quadrangular ou pentecostais... não... os presbiterianos, também, desde o começo têm atacado muito os nhanderu".

Por causas não muito bem definidas é enorme o número de suicídios no território guarani no Mato Grosso do Sul - 293 caiovás teriam se suicidado desde 1982, quase sempre por enforcamento, em árvores baixas, uma espécie de auto-estrangulamento com uma corda fina. Os estudiosos se referem a dramas que implicam "o cerco territorial", a crise de identidade, o alcoolismo, estupros das meninas índias - que envolvem fazendeiros, peões e estranhas orgias sexuais -, seguidos de morte por suicídio.

Antropólogos que estudam os guaranis são muito cautelosos quando falam sobre os suicídios entre os caiovás. Segundo Maria Inês Ladeira, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), faltam estudos etnográficos sobre esse assunto. Outro antropólogo, Rubem Thomas de Almeida, diz que nada disso está bem explicado. Por que se suicidariam os caiovás - e não os nhandevas daquela região? Por que não se suicidariam outros guaranis? Martins Villas, do Cimi, diz que "os guaranis falam muito pouco sobre isso". Ele arrisca uma explicação dos suicídios do ponto de vista religioso: "A meta é o encontro com o pai. Eles rezam para ter uma levitação e chegar, ainda em vida, à Terra sem Males (busca incessante e mais que milenar dos guaranis). Por causa da falta de perspectivas, o suicídio seria a solução radical para encontrá-la. Mas os guaranis não aprovam, como coletividade, os suicídios".

Fim sem fim

Antropólogos, etnólogos, lingüistas e outros estudiosos falam com alguma ironia da maneira apressada com que a imprensa, no Brasil, muitas vezes, dedicou matérias "ao fim dos guaranis". Para isso contribuiriam a forma apressada com que são levantadas e escritas (ou levadas à TV) a maioria quase absoluta das matérias e a própria metodologia equivocada com que operam muitos jornalistas, além de outros documentadores.

Assim, fugiriam à percepção dos jornalistas as sutilezas culturais e existenciais, por exemplo, dos grupos guaranis - mbiá, nhandeva e caiová. "A idéia de território do caiová é diferente da dos outros grupos." E o território, para os guaranis, é tekoá, "lugar onde se realiza o modo de ser guarani". Quem explica isso é Rubem Thomas de Almeida, que viveu muitos anos entre o Paraguai e o Mato Grosso do Sul. Para alguns caiovás, o tekoá, uma região cortada pelo rio Paraguai, é o próprio centro do mundo. Outra palavra fundamental no repertório guarani é oguatá, isto é, caminhar. "A rigor", diz Rubem Thomas, "todo guarani tem essa característica: caminhar." O próprio caiová faz essa andança, apesar da definição mais precisa do seu território. Já a caminhada histórica dos guaranis não é uma andança qualquer. Eles caminham atrás da Terra sem Males.

Há cerca de 5 mil anos eles teriam começado a migração para o sul, a partir da margem sul do rio Amazonas. No Paraguai, estariam há cerca de 2 mil anos. Nos séculos 16 e 17 já se encontravam na Mata Atlântica. Atualmente, no litoral desde o Rio Grande do Sul até o Espírito Santo existem aldeias guaranis. O CTI participou decisivamente das operações para o reconhecimento dos seus territórios. Num longo estudo de Maria Inês sobre os mbiás da Mata Atlântica ela explica a complexidade da relação com o processo demarcatório - iniciado, na área paulista, no governo Franco Montoro.

A demarcação de aldeias, ao longo da mata e do oceano, envolvia aspectos delicados, sutis e quase incompreensíveis para a civilização ocidental, porque os mbiás, em certas circunstâncias, pareciam tomá-la como "uma limitação de espaço que significa a própria deformação do seu mundo". Maria Inês diz que esse povo aprendeu a desenvolver uma espécie de relação diplomática com a "sociedade dominante", o que foi assimilado ao longo de um enorme contato com ela, desde os tempos do descobrimento.

A antropóloga explica que durante esse "contato antigo e intenso com os brancos, caracterizado por perseguições culturais e físicas, os guaranis desenvolveram vários mecanismos para guardar e viver suas tradições, garantindo sua reprodução enquanto povo e etnia".

Fazer-se de bobo

Assim, segundo a estudiosa, cria-se uma situação estranha, porque aos olhos da sociedade hegemônica parece, por exemplo, que o guarani nem existe mais. Ou aquele homem que veste roupa de caboclo é um verdadeiro índio? Como diz o antropólogo Rubem Thomas, é como se o guarani - para evitar um confronto com os brancos - fingisse que nem é mais guarani. E há até uma palavra guarani (nhembotavy) que significa mais ou menos isso: fazer-se de bobo. Assim, para provar a necessidade de demarcação de áreas mbiás, o CTI teve que enfrentar um problema ligado ao modo de ser dos mbiás - um grupo que tem uma visão espacial e geográfica própria, que passa pela definição precisa e quase cabalística de territórios tradicionais, aldeias, etc., ao mesmo tempo que não faz questão da propriedade da terra, que, para eles, é um bem divino.

Mas hoje já existe, enfim, um conjunto de áreas guaranis delimitadas ao longo da costa, essencial para sua sobrevivência, como dizem os estudos do CTI, acatados pela Funai (Fundação Nacional do Índio). A demarcação se tornou coisa de vida ou morte para esse antiqüíssimo povo com o advento de novas rodovias, ao longo do litoral. Com a demarcação, diz Maria Inês, "é possível manter as aldeias mbiás como pontos estratégicos que permitem manter a configuração de seu espaço e presença junto à serra do Mar". A demarcação de várias áreas não impediu a existência de problemas fundiários, aqui e ali - mesmo em São Paulo, e agravados no Paraná e Santa Catarina, onde os trabalhos demarcatórios ainda não se concretizaram.

O refinamento da história, da cultura, da sensibilidade e dos mitos guaranis torna muito obscuros os seus sonhos, desejos, caminhadas e todo o seu "modo de ser" para os que não conhecem sua história e cultura.

Não é nada fácil para um turista do litoral entender o sentido da vida de uma família mbiá que vende um arco e flecha ou colares de miçangas à beira da estrada. Não é nada fácil para um jovem surfista perceber o significado do próprio oceano para aquele homenzinho que mal sabe falar português. Muito menos imaginar que ele faz parte de uma cultura que fascinou e fascina tantos intelectuais e artistas - e sobre a qual se produziram tantos e tão complicados estudos, e há tanto tempo.

Ora, para os mbiás, como escreveu Maria Inês, é fundamental exatamente esse "território situado à margem do mundo, isto é, na beirada do -oceano, que atribui às aldeias um significado religioso e científico". A partir do litoral, se estruturam o cosmo e a geografia desse grupo indígena.

Leitura simbólica

Toda a vida guarani é permeada pelos mitos, pela religião. A escolha do lugar em que foi erguida uma aldeia, seja há cem anos ou hoje, corresponde sempre a uma certa leitura simbólica do espaço. Ali devem existir certas plantas (hoje isso é sempre mais difícil), certa configuração do terreno, a presença de certos sinais. Muitas vezes todas essas coisas nascem de visões, sonhos. E eis um grupo guarani mais uma vez na estrada. Essas mudanças nunca são aleatórias - como explicam os estudos antropológicos. "Eles não ficam andando sem razão, porque sejam nômades", diz a antropóloga Bernardette Franceschini. "Foi por alguma razão bem precisa que eles deixaram um lugar por outro." Além do mais, os mbiás têm parentes em várias aldeias. A andança faz parte de sua vida religiosa mas também social. Andam para encontrar parentes. Ou para casar.

A dramaticidade do mundo guarani e a beleza dos seus mitos - nunca é demais dizer - inspiraram, por exemplo, Érico Veríssimo a criar um dos mais belos personagens de O tempo e o vento, Pedro Missioneiro. Da mesma forma, os guaranis e outros índios do Brasil fascinaram tanto o autodidata alemão Curt Ungel que ele, autor da fabulosa obra de etnografia O mito da criação do mundo, foi batizado de nimuendaju por guaranis do grupo apapocuva. Nimuendaju quer dizer "aquele que dispõe seu espaço eterno". Em meados do século 20, a sombra dos mitos guaranis uniu ainda o trabalho dos iluminados León Cadogan e Pierre Clastres, o primeiro paraguaio e o segundo francês.

León Cadogan publicou, em 1959, Ayvu rapyta, ou o fundamento da língua humana. Alguns anos depois, em 1965, o próprio Clastres recolheu mitos mbiás, após percorrer suas aldeias por vários meses. Pierre Clastres publicou sua tradução e interpretação dos mitos e cantos sagrados dos índios guaranis, com o título A fala sagrada. Ali aprendemos que os guaranis denominam "as palavras que lhes servem para se dirigir a seus deuses" de "as belas palavras". Vale a pena ler o que o mestre francês escreveu sobre tais e tão belas palavras, ou ñe'é porã, "que ainda ecoam nos lugares mais secretos da floresta, que, desde sempre, abriga aqueles que autonomeando-se Ava, os homens, se afirmam assim depositários absolutos do humano. Homens verdadeiros, portanto, exacerbados por um orgulho heróico, eleitos dos deuses, marcados pelo sinal do divino esses que se dizem igualmente os Jeguakawa, os Adornados".

Mutação na tradição

A vida guarani, seus espaços geográficos e históricos e até mesmo a natureza de seus adornos se metamorfoseiam através dos séculos. "Mas é uma mutação dentro da tradição" diz o antropólogo Rubem Thomas. Na aldeia do Rio Silveira, no litoral norte de São Paulo, para dar um exemplo, há o pajé Samuel, um nhandeva comandando as rezas e cantos que poderão entrar noite adentro, na grande opy, que é uma espécie de igreja guarani, bem no meio da aldeia. Ele já foi cacique - e cedeu o cargo ao jovem Adolfo há poucos meses. Samuel reclama da falta das boas ervas da medicina guarani, nas matas que cercam a reserva, entre São Sebastião e Bertioga - matas cercadas e devastadas, "ainda mais agora que há boa estrada passando ali perto da praia".

Nos últimos tempos aumentou a população na aldeia, que tem hoje cerca de 320 habitantes e conta até com uma escola bilíngüe, com aulas em guarani e português. A comunidade perdeu muitas ervas e plantas da medicina tradicional, mas tem o apoio de hospitais dos municípios vizinhos. O parto é feito pela velha índia, mestra em resolver até situações complicadas, como um parto junto ao riozinho. Mas quase sempre é possível chamar a ambulância.

O cacique e um conselho tribal são eleitos pela comunidade. O cacique aprende até a falar pausadamente com os prefeitos ou vereadores, com o pessoal das ONGs que lá aparecem com propostas simpáticas como a instalação de um viveiro de plantas típicas da Mata Atlântica, que hoje permite a algumas famílias arrecadar algum dinheiro todo mês.

Esse é um momento da eternidade de 5 mil anos guaranis, no meio de tantas estranhezas, dramas e a alegria de ser o povo para quem Nhanderu (Deus) fez o mundo com todas as suas coisas. Cada mbiá sabe que sua alma veio da morada de Nhanderu Tenonde - nosso Pai Primeiro -, de quem ele é filho muito especial, e que está destinado a viver ao lado do próprio Pai, na Terra sem Males, aquela que fica depois das imensas águas do oceano. E assim sendo os guaranis aprenderam dos avós muito antigos que eles sempre foram poucos, comparados com os juruá, os estranhos, os que não têm a proteção direta de Nhanderu.

Os filhos caçulas

Numa aldeia do Espírito Santo - que faz parte desse sistema mbiá distribuído pela Mata Atlântica - a antropóloga Maria Inês Ladeira gravou longas e graves frases da índia Maria sobre como Nhanderu havia enganado os brancos, os juruá, dando-lhes tantas coisas, tantas riquezas que negara aos seus filhos caçulas e legítimos.

"Se dermos essas coisas aos nossos filhos caçulas", disse Maria, "eles vão acabar. E vai acabar um de cada vez. E Nhanderu Tenonde diz que disso vai depender a permanência da Terra. Pois se desaparecerem nossos filhos da Terra isso vai apressar a destruição do mundo. Nhanderu diz que construiu este mundo para seus filhos e não para os brancos. E por nós, por nossa causa, Nhanderu não destrói o mundo."

Na verdade, os mbiás "têm a responsabilidade de continuar existindo", como diz Maria Inês. Isso os levaria a uma cautela estratégica. "Para não desaparecerem e não levarem o próprio mundo à destruição, devem evitar confrontos diretos e desastrosos com os brancos", sustenta. Assim o quer o próprio e supremo Nhanderu. E o fio que assegura a sua existência é esse elo cultural-religioso de suas antigas crenças...

Para sua dissertação de mestrado, a antropóloga do CTI recolheu o depoimento de um jovem líder espiritual, chamado Davi, que diz ser o mundo feito em planos superpostos. "Na terra, encontra-se yvy apy: extremidade ou ponta do mundo, situada na beira do oceano. Entre o mar e a Terra sem Males, Yvy Marãey, na direção do sol, está Yyva pau, espaço entre os céus, ilhas aonde os brancos não chegam", para onde vão as almas das pessoas que morreram e que buscam voltar ao seu lugar junto ao seu Nheeru ete."

A supor pelo relato de Davi, o destino mbiá ou guarani seria partir do começo ao fim do mundo andando pela beirada do oceano. Mas terríveis dificuldades teriam surgido para que esse destino feliz e conhecido por eles fosse alcançado. O mais claro desses obstáculos são as estradas abertas ao longo da serra do Mar, que os devassam aos olhos dos estranhos e os vulnerabilizam atrozmente. Tudo isso leva a transgredir ensinamentos que eles não poderiam desobedecer, como se alimentar de mel, frutas, batata-doce e certas ervas. Hoje, eles consomem alimentos comprados nas vendas dos brancos. E já que não conseguem mais assentar suas famílias nos abençoados tekoá, não estaria, assim, se cumprindo a previsão de alguns sábios mbiás, segundo cujas palavras, que teriam origem no próprio Nhanderu, o mundo seria destruído pelo fogo? Alguns mbiás e nhandevas até acham que esse fogo se alastrará a partir da Usina Nuclear Angra I, perto de onde existe uma aldeia guarani.

Ora, como diz Pierre Clastres, quando os conquistadores chegaram à América do Sul, no início do século 16, pelas aldeias tupis e guaranis, erravam, "de tribo em tribo, de aldeia em aldeia, homens denominados, pelos índios, karai. Eles diziam que se fazia necessário abandonar este mundo e ganhar a pátria das coisas não mortais, lugar dos deuses, Terra sem Males". Era uma hora própria para as palavras extremas, porque o mundo em que viviam estava sendo abalado por uma situação extrema, a chegada dos colonizadores, que levava ao surgimento de um novo estado social.

Um pouco por todos os lados, hoje como em outros tempos, surgem ameaças aos cerca de 40 mil guaranis que vivem no Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Para os membros do CTI, todos os problemas que envolvem o presente justificam a demarcação de aldeias guaranis na serra do Mar/Mata Atlântica. Pois, para alcançar a Terra sem Males, eles deverão estar perto do oceano. Mas os antropólogos dessa organização também se preocupam em contribuir para que eles soprem um pouco mais a brasa da memória.

Viagem ao Paraguai

No começo do ano um ônibus com um grupo de guaranis vindos de várias aldeias do litoral brasileiro partiu rumo ao Paraguai e Argentina, em viagem organizada pelo CTI. A expedição passou por muitos lugares caros à memória e história guarani. Um dos pontos mais emocionantes da viagem foi a visita às Missões jesuíticas, onde os guaranis ficaram impressionados com a grandeza daquelas ruínas onde viveram, um dia, alguns de seus antepassados. Os viajantes puderam saber coisas que acontecem com seus irmãos de outros países. As famílias são muito unidas e afetivas. Eles não se esquecem, e se visitam, de um jeito ou de outro. Sabem que a vida de um guarani deve ser importante, sempre, para outro guarani.

Dois jovens índios escreveram em diários - sugestão do CTI - suas impressões e passagens marcantes da viagem. Eles registraram a saudação do cacique do Fortim Borore, no Paraguai, àqueles que vinham de longe. Ele falou assim:

"Todos acreditamos em Deus. Só ele pode iluminar os passos de cada um de nós, porque só o pai verdadeiro está vendo cada um de nós. E só Deus dá algo a cada um de nós".


Grafia utilizada para palavras em guarani

Para o nome das etnias guaranis (caiová, nhandeva e mbiá), utilizamos nesta matéria a grafia aportuguesada. Para outras palavras em guarani, que é uma língua oxítona, optamos pelas grafias empregadas, atualmente, por grande parte dos antropólogos (de acordo com as quais os vocábulos acima seriam, por exemplo, kaiowá ou kaiowa, ñandeva e mbya ou m'byá).



Os pingos nos is

Tupi? Guarani? Tupi-guarani? Quem é quem, afinal, nessa confusão? Como as classificações antropológicas se baseiam em divisões lingüísticas, nada melhor que consultar alguém do ramo dos idiomas.

O lingüista Waldemar Ferreira Neto, da Universidade de São Paulo (USP), adverte que essas denominações devem ser usadas com cuidado. Segundo ele, o guarani, em seus vários dialetos, é uma das línguas da família tupi-guarani, que por sua vez é filiada ao tronco lingüístico tupi, o único suficientemente definido das línguas indígenas brasileiras.

Tupi é um nome genérico criado pelos portugueses no século 16 para identificar numerosos grupos nativos encontrados ao longo de quase toda a costa brasileira, desde o nordeste até São Vicente (SP). Esta última localidade demarcaria o início do território dos carijós, provavelmente parentes dos hoje chamados guaranis.

A língua guarani foi dividida pelo antropólogo Egon Schaden em quatro dialetos. Três deles são correspondentes aos principais grupos guaranis reconhecidos: caiová, mbiá e nhan-deva. O quarto dialeto é o jopará, ou guarani paraguaio, com fortes influências do espanhol, e que se tornou uma das línguas oficiais do Paraguai.

Waldemar encontra também no vocabulário dos mbiás do litoral brasileiro remotas marcas do espanhol. Essa seria mais uma prova do caráter migratório desse subgrupo, que é encontrado no Brasil, Paraguai e Argentina. No dialeto nhandeva, por outro lado, o lingüista identifica traços do português, o que indicaria uma presença muito antiga e consolidada no território brasileiro.


O limite é o mar

Os antropólogos e outros especialistas na cultura indígena produzem estudos que dão base a decisões jurídicas a respeito de problemas na área fundiária. A antropóloga Maria Inês Ladeira, por exemplo, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), já participou de vários processos de identificação de aldeias guaranis do litoral, como Aguapeú (SP), Parati Mirim, Araponga e Bracuí (RJ).

Nos seus laudos antropológicos, usados como peças em processos judiciais em que particulares pleiteiam terras ocupadas pelos guaranis, Maria Inês defende o direito dos índios ao território com base na relação tradicional que eles têm com a Mata Atlântica no litoral e na serra do Mar.

Contudo, segundo ela, entre os próprios guaranis o conceito de propriedade de terra não existe. As palavras que a antropóloga ouviu do mbiá Tiago, que vive na aldeia da ilha do Cardoso, resumem esse pensamento: "O único dono da terra é Deus (Nhanderu). E Deus não vendeu a terra para ninguém".

Rubem Thomas de Almeida, outro antropólogo, descreve uma de suas experiências no Rio Grande do Sul, onde viu um guarani mbiá examinar longamente uma região que lhe ofereciam para ser demarcada como território de uma aldeia, e finalmente falar mais ou menos assim: "Queremos uma terra boa para caçar, pescar, com matas e rios, mas não queremos saber de cercas. Para nós, o limite é o mar".

Outra experiência do antropólogo se deu na área em que foi construída a represa de Itaipu, entre Brasil e Paraguai. O fato é que a construção da represa atingiu áreas ocupadas por populações indígenas. Em meados da década de 70, a Itaipu outorgou 259 hectares aos guaranis. Mas eles não se conformaram com isso. E para levar à frente suas demandas se aproximaram de um sem-fim de instituições, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da CNBB. Depois de algum tempo, diz Rubem Thomas, até o Bird (Banco Mundial) estava manifestando ao governo brasileiro que não aprovava a perda territorial dos indígenas.

Em 1995, a pedido da Itaipu, o antropólogo fez um laudo onde explicava que os guaranis queriam e necessitavam de uma área bem maior, onde pudessem caçar, pescar, etc. Em 96, enfim, a Itaipu Binacional comprou uma fazenda de 1.744 hectares para os índios, no município de Diamante d'Oeste, Paraná. Entre as opções existentes, duas se enquadravam nas características expostas no laudo do antropólogo. Mas a escolha definitiva, diz ele, foi feita pelos indígenas. E tinha aquilo de que eles gostam: matas e rios. Finalmente, a 18 de abril deste ano, foi feita a transferência das famílias guaranis para lá.

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