12.2.11

PITÁGORAS Santíssimo Quaternário

Pitágoras e sua doutrina ainda hoje despertam grande interesse não só entre os estudiosos de história das religiões, da Filosofia e das ciências, como também entre os que se ocupam com temas peculiares ao ocultismo, à alquimia e à magia, os quais, nos nossos tempos de pós-modernidade, parecem estar tão em voga quanto estiveram na Renascença. Há uma onda mundial de fascinação pela chamada geometria sagrada e pela idéia de que a natureza e até mesmo as formas do corpo humano contêm certas relações de harmonia que se expressam por meio de números, como a noção de simetria da beleza, por exemplo. A seguir, veja como o primeiro homem a se denominar filósofo (amante do saber) iniciou a forma de pensar que iria mudar o mundo au unir a razão abstrata a ritos místicos.

PITÁGORAS (570 a.C.- 490 a.C.) Nasceu na ilha grega de Samos, perto da Ásia Menor. Deixou sua terra natal por causa de divergências com o tirano Polícrates e partiu para o Egito. Reza a tradição que após 30 anos de viagens foi morar em Crotona, no sul da Itália, onde fundou sua seita e viveu até ser expulso, no fim da vida. Morreu na cidade de Metaponto com cerca de 90 anos. Abaixo Pitagóricos celebram a alvorada, de Fyodor Bronnikov

O testemunho mais antigo de que dispomos acerca do valor pitagórico dado a uma figura geométrica provém do escritor sírio Luciano de Samósata (130 d. C.), que diz ser o pentagrama o símbolo da saúde dos pitagóricos. Em Sobre um Lapso Cometido ao Saudar, uma de suas mais de oitenta obras, Luciano narra o episódio acontecido durante uma caminhada matutina, quando encontrou uma eminente figura da sociedade local, a quem saudou com a palavra hygiaínein(tenhais saúde). Ao fazer isso, ele quebrara uma convenção social, pois na saudação dirigida a pessoas respeitáveis, era habitual o uso da fórmula kaírein (alegrai-vos). A justificativa de Luciano para o ato falho desdobra-se num comentário acerca do tipo de saudação preferida pelos filósofos antigos. E menciona que Pitágoras e seus seguidores Arquitas de Taranto e Ocelo de Lucânia sempre iniciavam suas cartas expressando o desejo de boa saúde. Do ponto de vista dos pitagóricos, uma boa saúde seria aquilo que mais convém à alma e ao corpo, encerrando todos os bens que o homem possa almejar. Diz Luciano que assim esses filósofos exprimiam que “a alegria e a prosperidade poderiam, sim, ser conseqüentes à saúde, mas que nem sempre a saúde é conseqüente à prosperidade e à alegria”. É em tal contexto que Luciano faz uma alusão ao “tríplice triângulo enlaçado”, o pentagrama, que ele afirma ser um símbolo de identidade da escola pitagórica e uma espécie de emblema da saúde.

As evidências citadas por Luciano para fundamentar sua opinião a esse respeito, são de má qualidade. Não se sabe de nenhuma carta escrita por Pitágoras, o qual, de resto, não deixou nada por escrito em vista da imposição de sigilo que era própria da sua escola. Ademais, a mencionada missiva de Arquitas a Platão é considerada uma fraude na opinião dos especialistas. É possível que tanto a saudação hygiaínein quanto a promoção do pentagrama a símbolo da saúde tenham origem em autores do período helenista e não remontem ao próprio Pitágoras e seus seguidores imediatos.

DE CIENTISTA A SHAMAN
Como Pitágoras provavelmente nasceu em torno ao ano 570 a. C., Luciano está separado dele por nada menos que sete séculos. No entanto, as três biografias de que dispomos sobre Pitágoras provêm de autores posteriores a Luciano, a saber, Diógenes Laércio (180 d. C.), Porfírio (233 d. C.) e Jâmblico (280 d.C.). Desses autores, Porfírio e seu discípulo, Jâmblico, pertenceram ao grupo de filósofos neoplatônicos, e foram formados sob forte influência do pitagorismo. Luciano, ao contrário, era um cético em matéria de religião e, portanto, neste particular, seu testemunho merece bastante crédito, porque não tem parti pris religioso. Mas é estranho que nenhuma das biografias de Pitágoras faça menção ao pentagrama como símbolo da saúde. De outra parte, o livro Teologia da Aritmética, atribuído a Jâmblico, mas que consiste numa compilação de diversos autores, afirma que o número da saúde é o seis (e não o cinco), devido a representar a “integridade dos membros do corpo”.

ESTRELA DA SAÚDE

REPRODUÇÃOA proporção entre certos segmentos da estrela de cinco pontas chamada pentagrama obedece à chamada média de ouro1, que depende do conhecimento dos números irracionais e cuja descoberta é atribuída aos pitagóricos antigos. Por outro lado, na história da geometria está registrado que os pitagóricos foram os primeiros a descrever as propriedades do pentagrama. Além disto, esta figura deveria ter tido um significado simbólico especial para eles, porque costumavam usar a geometria para representar certas idéias morais, religiosas e cosmológicas.

Por alguma razão que é desconhecida, mas sobre a qual se especula no final deste artigo, o pentagrama se impôs como símbolo da saúde e da perfeição do corpo durante a Idade Média e a Renascença. Ele inspirou o trabalho de alquimistas e ocultistas como Paracelso e Agrippa. Esse tipo de evolução levou à junção entre as crenças pitagóricas e a teologia cristã, combinação complexa e contraditória que ocorreu claramente na alquimia ocidental. A própria concepção de salvação na alquimia, como estudada por Jung, está profundamente imbuída de conteúdos simbólicos extraídos do pitagorismo, inclusive no que se refere à interpretação mística dos primeiros quatro números.

1- A média de ouro (ou número phi) corresponde a 1.6180339887499... Trata-se de um número irracional porque sua parte fracionária nunca termina nem se torna periódica.

"O número é o REGENTE DAS FORMAS e idéias e a causa de DEUSES E DEMÔNIOS."
Pitágoras segundo Jâmblico da Cálcia
O DEUS GREGO As dimensões do pensamento pitagórico mundo de hoje são imensas. O filósofo influenciou o astrônomo Kepler (1571 – 1630) nas idéias das órbitas elípticas dos planetas e dos sólidos geométricos perfeitos. Os Rosacruzes e Maçons buscam nos pitagóricos suas origens. E é impraticável imaginar um mundo sem o Teorema de Pitágoras ou raízes quadradas, números irracionais e seus desenvolvimentos posteriores.

O pitagorismo mantinha algumas crenças e práticas relativamente heterodoxas para a época, como a transmigração da alma e o vegetarianismo, duas características que o conectam ao orfismo sem que se possa dizer quem influenciou quem. À semelhança dos cultos de mistérios, as fraternidades pitagóricas impunham a exigência de pureza moral prévia do candidato, isto é, a exigência de não haver cometido nenhum crime, e o voto de manutenção de segredo. Mas não se pode dizer que existiu uma verdadeira religião pitagórica. É reducionista a interpretação da figura de Pitágoras na qualidade de fundador de uma seita religiosa. Ele exerceu papéis sociais muito díspares, foi líder político, doutrinador religioso e curador. Por outro lado, os estudiosos atualmente contestam que Pitágoras tenha sido o iniciador das concepções matemáticas e geométricas que vieram a caracterizar posteriormente sua escola. A autoridade de Pitágoras como cientista não é mais aceita, ao contrário do que foi propagado durante o Iluminismo.

Pitágoras não era um filósofo nem um cientista, mas um adepto da “polimatia”, conforme a denominação um pouco jocosa que lhe deu Heráclito

O filólogo alemão Walter Burkert, autor do mais aclamado estudo moderno sobre o pitagorismo, divulgou a interpretação bastante polêmica de que Pitágoras era uma espécie de shaman, porque se caracterizou por realizar feitos extraordinários, como o de ser visto em dois lugares ao mesmo tempo. Para Burkert, a firme crença de Pitágoras na metempsicose ou reencarnação só pode ter origem em experiências pessoais de transe, que o transportavam ao mundo do divino e do sobrenatural.


Uma maneira mais consensual de entender a figura de Pitágoras é vê-lo como um educador integral. A fraternidade que estabeleceu em Crotona, sul da Itália, tinha os objetivos amplos de uma educação geral dos jovens cidadãos e atuava no espírito da Paideia, tão bem descrita por Werner Jaeger. Buscava uma formação integral - política, moral, religiosa e terapêutica. Não era um filósofo nem um cientista, mas um adepto da “polimatia” (múltiplo conhecimento), conforme a denominação um pouco jocosa que lhe deu Heráclito. Para o mundo moderno, o tipo de integralidade educacional exercida por Pitágoras é muito difícil de ser compreendido porque resulta de uma síntese laboriosa de práticas e conhecimentos pertencentes a domínios muito afastados e contraditórios.

REPRODUÇÃO
Sabe-se que vários dos avanços na matemática e geometria atribuídos a Pitágoras foram, na verdade, feitos por seus discípulos. A seita impunha normas rígidas de conduta e se dividia entre os matemáticos, que estudavam as nuances da ciência e da mística, e os alunos, que apenas ouviam os ensinamentos sob a forma de axiomas misteriosos

A política e a moral de Pitágoras tinham traços aristocráticos, embora Pitágoras, um jônico, talvez jamais agisse como um aristocrata dório. Para se ter uma idéia das atividades políticas dessa escola, convém lembrar que, em Crotona, Pitágoras e seus seguidores influenciaram profundamente a legislação e acabaram sendo alvos de uma rebelião popular que os expulsou da cidade. Em Taranto, Arquitas foi eleito por seis vezes magistrado da cidade-Estado; em outras cidades, os pitagóricos tiveram função dirigente destacada.

UMA SEITA À PARTE
O modo de vida (bios, em grego) dos pitagóricos estava caracterizado pela observância de uma moral ascética, que incentivava o desenvolvimento das virtudes heróicas da austeridade, coragem e camaradagem, e que seguia estritamente um conjunto de regras de cuidado com o corpo e com a alma. Segundo Heródoto, usavam sempre uma bata branca e limpa. Praticavam o estudo constante, o silêncio, a meditação, os exercícios físicos e a alimentação vegetariana. Jâmblico registrou a rotina diária dos pitagóricos. De manhã, faziam caminhadas solitárias, meditativas, preferencialmente em lugares calmos, tais como bosques ou templos. Juntavam-se, em seguida, para discussão das doutrinas sagradas e para análise do que lhes havia acontecido no dia anterior, visando desenvolverem a memória e manter-se conscientes de sua conduta, corrigindo eventualmente os erros cometidos. Logo, iniciavam os exercícios corporais: faziam corridas, pulavam com pesos de chumbo em suas mãos e alguns se dedicavam a uma espécie de luta esportiva. Geralmente almoçavam pão com mel. Jamais caçavam ou comiam carne de animal, e evitavam comer feijão por razões que até hoje permanecem obscuras.

O modo de vida purificador era exigido por um período de cinco anos, durante o qual o candidato observava rigoroso silêncio. Os estudantes dedicavam-se a aprender ouvindo; tinham que assimilar os acusmas, coisas ouvidas. Mas existia um outro tipo de ensinamento, as mathemata, ou seja, as coisas que podem ser conhecidas em forma disciplinar ou sistemática, e que abrangiam o estudo da aritmética, geometria, música e astronomia. Admite-se atualmente que Pitágoras limitou-se à instrução dos acusmas, enquanto seu discípulo Hípaso foi o verdadeiro organizador da instrução das mathemata. Há também a opinião de que essas duas linhas mantinham uma rivalidade entre si.

Segundo a tradição, Pitágoras foi discípulo de Tales de Mileto (620 a.C. – 546 a.C.) que lhe recomendou uma viagem para o Egito. É possível que lá, ou na Babilônia, Pitágoras tenha descoberto, ao menos em parte, as regras de seu famoso teorema. Também é provável que dos seguidores de Orfeu (abaixo) o grego tenha extraído a idéia da mentepsicose, transmigração das almas para diferentes corpos. Abaixo, Orfeu e Euridice em quadro de Nicolas Poussin

A medicina dos pitagóricos estava fundada basicamente na dieta (em grego, díaita), palavra que hoje se associa com alimentação adequada, mas que originalmente significava um conjunto de regras para preservar a saúde. Era seletiva em suas práticas, valorizando os banhos e os exercícios físicos, além da alimentação. Não favorecia os métodos radicais de cura através de procedimentos cirúrgicos ou do uso do cautério. Edelstein e outros historiadores da medicina afirmam que os métodos de dieta desenvolvidos por Hipócrates e seus seguidores foram profundamente influenciados pelas práticas dietéticas dos pitagóricos.

Para os pitagóricos, as formas ideais da harmonia estão encarnadas no mundo, tal como a alma está encarnada no corpo. Deus não é um ser transcendente, mas se manifesta concretamente e age no mundo seguindo os princípios da harmonia. O Cosmos como um todo representa o universo adornado e ordenado pelos princípios dos números e pela presença de Deus. É o que consta do testemunho sobre a filosofia pitagórica fornecido pelo Pai da Igreja, Justino Mártir:

Deus é um; e Ele próprio não existe fora do mundo como alguns supõem, mas nele, estando inteiramente presente em todo o círculo, e contemplando todas as gerações, sendo o ingrediente regulador de todas as idades, e o administrador de seus poderes e trabalhos, o primeiro princípio de todas as coisas, a luz dos céus, o pai de tudo, a inteligência e a alma animadora de todo o Universo, o movimento de todas as órbitas.

Os pitagóricos da linha das mathemata pretendiam absorver essa linguagem divina da harmonia ao se dedicarem com afinco ao estudo da aritmética, da geometria, da música e da astronomia. O fundamento de todos esses estudos era a ciência dos números. É através do número que se constitui e se expressa a harmonia do universo: nos elementos da natureza que nos cerca, na trajetória dos astros pelos céus, nos sons do canto e até nas virtudes que devemos cultivar. O número era considerado a essência mesma de tudo o que existe, sem o qual nada pode ser devidamente conhecido.

A TEORIA DOS OPOSTOS SAGRADOS
Filolau de Crotona, contemporâneo de Platão, foi o primeiro discípulo a divulgar alguns dos dogmas da escola pitagórica. Ele dizia que a harmonia resulta da união dos contrários, a unidade da multiplicidade e o acordo das discordâncias. As coisas que são discrepantes entre si, ou seja, aquelas que não têm uma mesma natureza ou têm funções diferentes são justamente as que precisam ser harmonizadas. Como os alquimistas, os pitagóricos interpretavam que a perfeição do Universo e do homem é encontrada por uma conjunção dos opostos. Mas, ao contrário dos alquimistas, os principais símbolos para essa conjunção de opostos usados pelos pitagóricos não eram os astros, nem os quatro elementos naturais, nem os metais e outras substâncias químicas, mas certas noções puramente racionais e abstratas, como as seguintes, que são citadas por Aristóteles no início de sua obra Metafísica:

  1. Limitado x Ilimitado
  2. Par x Ímpar
  3. Um x Plural
  4. Direita x Esquerda
  5. Masculino x Feminino
  6. Repouso x Movimento
  7. Reto x Curvo
  8. Iluminado x Escuro
  9. Bom x Mau
  10. Quadrado x Oblongo

Nicolas Poussin - Landscape with Orpheus and Euridice

Desses dez pares, o mais importante para entender a metafísica dos pitagóricos é justamente o primeiro. Filolau afirmava que a natureza do mundo é um todo harmonioso de elementos limitados e ilimitados. O limitado corresponde às propriedades que se mantêm constantes em qualquer coisa ou relação; por exemplo, a forma retangular de uma mesa é uma qualidade limitada, porque obedece a uma forma geométrica determinada; já o cumprimento dos lados dessa mesa é ilimitado, porque varia infinitamente segundo o gosto e as necessidades das pessoas. O limitado está sujeito a uma forma, ou seja, a uma regra de proporções, enquanto o ilimitado expressa a matéria variável com que as coisas são feitas. O número está presente tanto no limitado quanto no ilimitado; mas é o limitado o responsável pela ordem do Cosmos, isto é, pelas proporções e movimentos que o compõem, o que pode ser verificado pelo estudo das disciplinas da geometria, da música e da astronomia.

Os números deveriam ser entendidos em sua essência sagrada não enquanto figuras abstratas, mas como entes que exibem características de sexo e personalidade
PLATÃO Foi profundamente influenciado pelos ensinamentos pitagóricos os quais serviram de base para seu idealismo e crença nas formas geométricas como verdades absolutas, acima de qualquer existência do mundo material

Diógenes Laércio diz que, para Pitágoras, a saúde é a permanência da forma, e a doença, sua destruição. A idéia de forma corresponde a tudo aquilo que tem proporções certas e duradouras, ao que é, enfim, harmônico. Não só a saúde, mas todas as demais características do homem e da natureza eram entendidas pelos pitagóricos como integrando a relação ideal de harmonia que fazia do Universo um todo ordenado, um Cosmos. A forma era entendida como a proporção ideal, ou, como dizemos atualmente, a estrutura. Não sabemos se os pitagóricos, ao afirmarem que a saúde é uma forma, queriam se referir à manutenção das proporções dos elementos que compõem o corpo, em sentido anatômico ou fisiológico. Mas, seguramente, tencionavam chamar atenção para o fato de que a saúde faz parte das qualidades intrínsecas da harmonia que estão presentes em todo o Cosmos.

Os números deveriam ser entendidos em sua essência sagrada não enquanto figuras abstratas, mas, sim, enquanto entes que exibem características de sexo e personalidade. O número um é masculino e considerado o pai de todos os números, porque “gera” todos os demais, por adição a si mesmo; ele expressa amizade, simpatia, igualdade, identidade. O número dois, feminino, caracteriza a diversidade, a desigualdade, o conflito, a mutabilidade. O número três, masculino, é a perfeição que se realiza pela mediação; está presente, portanto, em todas as condições de equilíbrio, moderação e justiça. Já o número quatro, feminino, representa a própria totalidade harmônica e por isto é particularmente relevante. É que com ele se exprime também o número dez, que é igual a 1+2+3+4. Quem conta até quatro, conta também até dez. A simbologia essencial do número dez decorre do fato de corresponder ao número de dedos da mão, com os quais todos nós aprendemos a contar.

Para entender melhor esta lógica na interpretação do 4=10, é preciso ter em mente o costume dos pitagóricos de representar os números mediante pedrinhas distribuídas de maneira uniforme dentro de certas figuras geométricas. Assim, Nicómaco de Gerasa descreve números que são triangulares, outros que são quadrados, pentagonais, hexagonais e assim por diante. Como se vê pelas figuras seguintes, quatro é um número quadrado e cinco é um número pentagonal.

O número dez, por sua vez, é triangular. A particularidade deste arranjo triangular é que ele reproduz os quatro primeiros números, formados pelas fileiras de pedrinhas, em ordem contínua, do vértice à base do triângulo.

Esta figura corresponde justamente ao símbolo sagrado dos pitagóricos, chamado de Quaternário (Tetraktis) e de Década. Segundo Filolau, o poder do Quaternário é o princípio e guia de toda a vida – a divina, a celestial e a humana. Para se ter uma idéia da importância deste símbolo basta mencionar que era através dele que os pitagóricos realizavam seus juramentos, reverenciando a memória de seu mestre:

Juro pelo descobridor do Quaternário
Que é a causa de toda sabedoria,
A raiz perene da fonte da Natureza.

Depreende-se deste juramento, que o Quaternário era a chave para realizar diversas interpretações numéricas nas disciplinas cultivadas pelos pitagóricos. Algumas destas interpretações foram reveladas posteriormente; por exemplo, a que se aplica aos intervalos musicais. Os pitagóricos sabiam que estes intervalos são produzidos por distintos sons que correspondem a medidas inteiras. Estudavam essas relações tonais exercitando-se num instrumento de uma única corda, chamado de monocórdio. O conhecimento dos intervalos musicais envolvia o cálculo da média aritmética e da média harmônica entre os diferentes pontos da corda proporcionais a seu comprimento. As proporções principais estavam contidas internamente ao Quaternário, a saber:

2:1 - a perfeita oitava
3:2 - a quinta perfeita
4:3 - a perfeita quarta

A terapia pela música era bastante recomendada para curar os estados da alma - a ansiedade, a depressão, a desorientação. Pelo que consta de suas biografias, o próprio Pitágoras compôs um conjunto de peças musicais ajustadas a cada tipo de estado anímico dos que acudiam a sua escola.

Quando se examinam esses cinco Quaternários, fica evidente a presença de uma organização hierárquica em cada série. Há um ordenamento de importância decrescente, moral e metafísica, que vai do número um ao número quatro. O fogo é superior ao ar e à terra, porque está relacionado com a origem do universo; do mesmo modo, a razão está acima da emoção e do corpo, sinalizando a capacidade de auto-domínio e a virtude da temperança. Por sua vez, a primavera, que corresponde à infância, é melhor que o inverno, que corresponde à velhice.

OS QUATRO ESSENCIAIS

Por ser considerado o mais perfeito dos números e conter todas as proporções, o Quaternário por certo guardava também uma referência esotérica à saúde. Segundo Filolau, ele é também “o princípio da saúde”. Mas como a obra de Filolau sobreviveu apenas em fragmentos, ignoramos o fundamento conceitual desta afirmação. Pode estar relacionado com o equilíbrio entre os quatro elementos da natureza (fogo, ar, água e terra) e com os dois pares de opostos que caracterizam as propriedades destes elementos (frio e quente, úmido e seco). Sabemos, no entanto, das várias correspondências éticas e cósmicas dos Quaternários desenvolvidas por um pitagórico tardio, Teão de Esmirna. Este autor refere-se à composição de nada menos que dez Quaternários. Aqui são apresentadas apenas as quatro séries iniciais.

PosiçãoElemento NaturalParte HumanaEstações do AnoFase da Vida
UmFogo (seco e quente)RazãoPrimaveraInfância
DoisAr (úmido e quente)EmoçãoVerãoJuventude
TrêsÁgua (úmida e fria)VontadeOutonoMaturidade
QuatroTerra (seca e fria)CorpoInvernoVelhice

Para os pitagóricos, o relacionamento harmônico do homem com o Cosmos pressupunha o exercício de um comando ético e intelectual da alma em relação aos constituintes do corpo e suas necessidades. Justamente para restaurar tal comando é que aplicavam a terapia musical. Isto punha em evidência o objetivo maior da escola, o de reproduzir a harmonia em todos os aspectos de vida humana e, ao mesmo tempo, vivenciá-la como uma experiência cósmica, uma totalidade harmônica.

PITÁGORAS Conta-se que foi passando por um ferreiro que Pitágoras desenvolveu sua teoria musical. Ao ouvir as batidas compassadas do martelo o filósofo percebeu que os sons poderiam ser expressos matematicamente. Desse modo, dividiu os tons em relações baseadas em sua metade como ½, ⅔ até chegar às fundamentais quintas e oitavas

A totalidade harmônica, neste caso, compõe-se de um ordenamento dos quatro elementos naturais com uma quinta-essência, que corresponde à Mônada, entendida como alma individual ou como alma do mundo. O macrocosmo é, antes de tudo, uma totalidade viva e dotada de alma própria (anima mundi), como se pode ler no diálogo Timeu, de Platão, fortemente influenciado pelo pitagorismo. A composição heterogênea e a estatura desigual existente entre os quatro elementos naturais e a Mônada estão indicadas num fragmento de Filolau: “E os corpos (elementos) da esfera são cinco: os (quatro existentes) da esfera: fogo, água, terra e ar, e o navio da esfera, o quinto”. O navio, fonte de movimento, é um dos significados da Mônada; é aquilo que dá vida, ânimo e ordem à matéria inerte, ao indivíduo e ao Cosmos.

A prática da virtude era considerada em si um exercício de harmonia, um bem universal relacionado com a saúde. A harmonia vem de Deus, a quem todas as coisas devem sua existência e preservação. Por isso, a Deus devemos adorar contemplando as sublimes harmonias que Ele inscreveu no Universo. A esse respeito, convém citar, adicionalmente, uma das biografias de Pitágoras escrita por um autor grego anônimo, cujo texto foi preservado por Fótio, um erudito patriarca ortodoxo do século IX. A biografia afirma, a certa altura:

Pitágoras disse que o homem é um microcosmo, o que significa um compêndio do Universo; não porque, como outros animais, mesmo o mais inferior, ele seja constituído pelos quatro elementos, mas pelo motivo de conter todos os poderes do Cosmos. Porque o Universo contém deuses, os quatro elementos, animais e plantas. Todos estes poderes estão contidos no homem. Ele tem a razão, que é um poder divino; tem a natureza dos elementos e os poderes de movimento, crescimento e reprodução.

A situação do homem no Cosmos é determinada tanto pela articulação particular dos quatro elementos da natureza quanto pelas quatro faculdades própróprias de todos os seres vivos: não só o crescimento e reprodução, que as plantas também têm, não só o movimento, que todos os animais compartilham, mas essencialmente a razão, que lhe é algo peculiar. Contudo, essa concepção foi associada também ao nome de Platão e integralmente defendida pelos chamados neoplatônicos. O pitagorismo tardio do período helenista e o neoplatonismo dificilmente podem ser distinguidos.

"Eu não sei de nenhum outro homem que foi TÃO INFLUENTE QUANTO PITÁGORAS o foi na esfera do pensamento. Digo isso porque o que APARECE COMO PLATONISMO é em essência, pitagorismo. Toda concepção de um mundo externo revelado ao intelecto, mas não ao sentido, É DERIVADO DELE"
Bertrand Russell - filósofo inglês

Assim, pode-se cogitar que a concepção mais ampla da saúde entre os pitagóricos e os neoplatônicos dissesse respeito justamente a essa harmonia do homem na totalidade do mundo, ou seja, relacionava- se à correspondência entre o microcosmo e o macrocosmo, ambos animados pela Mônada. E pode-se dar um passo a mais, e presumir que a interpretação do pentagrama como símbolo da saúde tenha tido sua origem nessa mesma matriz simbólica que tenta representar a conjunção dos quatro elementos naturais com um quinto, de ordem sobrenatural, que é a alma do mundo.

Referências:
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Timpanaro, M. C. Pitagorici: testimonianze e fragmenti. La Nuova Itália, 1969.

*ROBERTO PASSOS NOGUEIRA

Fonte:portal Ciência & Vida