10.4.11

Mombaça e a ditadura que não foi

Os bestializados: Mombaça e a ditadura que não foi (1964-1985)

Fernando Antonio Lima Cruz 1


Introdução


Segundo o jurista, abolicionista, político e jornalista republicano, Aristides da Silveira Lobo, considerado um dos pais da República brasileira, em artigo publicado no Diário Popular, de 18 de novembro de 1889: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônico, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada.”



Aristides Lobo


Nos apropiamos da frase em que o célebre jornalista republicano exprimiu o seu desapontamento com a forma pela qual foi proclamado o novo regime e que serviu de título para a obra do historiador José Murilo de Carvalho, para demonstrar, neste artigo, a aceitação popular e o próprio desconhecimento da população das pequenas cidades, das atrocidades cometidas pela ditadura civil-militar brasileira, especificamente no município cearense de Mombaça.


A “revolução” de março de 1964 contra o governo João Goulart ficou caracterizada pela contingência. Jango foi deposto não por seus erros, mas por suas virtudes: não curvou-se ante a supremacia norte-americana, tornando-se assim numa ameaça para os interesses dos Estados Unidos na América Latina.


Para manterem-se no poder, os governos civis-militares utilizaram de todos os métodos e armas que tinham ao alcance das mãos: desde a censura à imprensa, até a cassação do mandato de políticos que se opunham ao regime e exílio de políticos e artistas famosos, chegando à prisão, tortura e morte de centenas de cidadãos brasileiros, métodos muito insípidos de repressão ao descontentamento popular nas grandes cidades brasileiras.


Com a decretação do Ato Institucional nº 3 (AI-3), em 3 de fevereiro de 1966, o governador e o vice-governador dos Estados passaram a ser eleitos por meio do voto indireto, ou seja, os deputados estaduais elegiam os chefes do poder executivo de suas respectivas unidades federativas.


O último governador do Estado do Ceará eleito por via direta, antes do golpe civil-militar de março de 1964, foi o coronel Virgílio Távora, eleito em 1962 pela União pelo Ceará, “um movimento no qual as elites políticas conservadoras cearenses, ligadas ao PSD e à UDN, uniram-se com o interesse de barrar a ascensão de novas forças políticas no Estado.” 2



Virgílio Távora


A vitória da União pelo Ceará foi esmagadora: elegeu 43 dos 64 deputados estaduais e 15 dos 21 deputados federais. O governador Virgílio Távora e o seu vice, Joaquim Figueiredo Correia, não concluiram os seus mandatos, pois renunciaram aos mesmos, para pleitearem uma vaga na Câmara Federal, nas eleições legislativas de 15 de novembro de 1966. A gestão foi concluída pelo presidente da Assembléia Legislativa, Franklin Gondim Chaves.


Mombaça no poder com a ascensão de Plácido Aderaldo Castelo ao governo do Estado


Com a extinção dos partidos políticos, em 27 de outubro de 1965, por força do Ato Institucional nº 2 (AI-2), o governo federal em uma forma de dar um aspecto “democrático” ao regime militar, publicou em seguida novo ato complementar permitindo a criação de três agremiações políticas. Para isso “era necessário que cada uma delas contasse com a assinatura de 120 deputados federais e de 20 senadores para funcionar.”3


A real intenção, por trás desta manobra, era a criação de apenas dois partidos políticos: um governista forte e um oposicionista fraco. Surgiram, então, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que seria o partido da aliança governista, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), reunindo o que restava das forças de oposição ao governo militar.


Egresso de uma pequena agremiação política, o Partido Social Progressista (PSP), o deputado estadual Plácido Aderaldo Castelo, a contragosto das forças políticas cearenses, foi indicado para suceder o governador Virgílio Távora no comando do governo do Estado.


O próprio governador Virgílio Távora em documento confidencial em que trata da sua sucessão com o presidente da República, marechal Humberto de Alencar Castello Branco, enumera as seguintes condições político-administrativas do postulante a sucedê-lo: 1º Pertencer o candidato à maior força ex-partidária que se integrou na Arena; 2º Aglutinar, em torno de seu nome, a maioria absoluta da Assembléia Legislativa; 3º Ter livre trânsito nos meios políticos, administrativos e revolucionários; 4º Manter-se integrado com a orientação e diretrizes dos Governos da República e do Estado, notadamente nas áreas políticas e administrativas; 5º Não ser político de posição radicalizada; 6º Assegurar o clima de paz e tranquilidade implantado, no Ceará, pela atual Administração. 4


O governador Virgílio Távora inicialmente indicara para sucedê-lo os nomes de Gentil Barreira e do major Adauto Bezerra. No mesmo documento, apesar de afirmar que não se trata de uma indicação pessoal, demonstra a sua predileção pela candidatura de Adauto Bezerra sob a justificativa “de vários fatores, políticos e administrativos, reforçada pelo apoio de 38 deputados da Arena dentre os 50 que compõem a sua Bancada Estadual, com francas possibilidades de outros deputados, na Assembléia, dela virem a participar.” 5


Prevaleceu a candidatura de Plácido Aderaldo Castelo, indicado pelo senador Paulo Sarasate, sob o beneplácito do presidente Castello Branco. Para vice, a ARENA indicou o general Humberto Ellery.



Segundo LINHARES:


“As forças que compunham o quadro partidário cearense não desejavam, em 1966, a candidatura do Professor Plácido Castelo ao Governo do Estado, tolerando-a porque ela contava com o patrocínio máximo do então Presidente da República.” 6


Indiferentemente aos acontecimentos ocorridos nos bastidores políticos e nos meios de repressão aos opositores do regime civil-militar, o pequeno município cearense de Mombaça, localizado no semi-árido nordestino, foi beneficiado pela ascensão do seu filho, Plácido Aderaldo Castelo, ao governo do Estado do Ceará.


Tradicionalmente a política local sempre foi caracterizada pela alternância de poder de suas elites, notadamente representadas pelas famílias Benevides, Vieira, Alencar, Castelo e Martins, que desde o século XIX mantêm o poder político no município sob a égide do bipartidarismo: conservadores e liberais, udenistas e pessedistas, arenistas e emedebistas. Observa-se que não há uma disputa ideológica, mas uma disputa política entre duas facções, que não difere em sua essência: o projeto de poder político.


Na gestão do governador Plácido Aderaldo Castelo (1966-1971), impulsionado pelo espírito desenvolvimentista dos governos militares, o município de Mombaça viveu um boom econômico com obras estruturantes e a instalação de indústrias de beneficiamento de algodão (impulsionadas pela produção do “ouro branco” da economia cearense), além de indústrias de destilação de aguardente de cana.


Apesar das dificuldades enfrentadas na sua gestão, decorrentes da limitação de recursos (o Fundo de Participação foi uma criação posterior ao seu governo), o que acarretou no freqüente atraso do pagamento de salários dos funcionários públicos estaduais (também atribuído à gestão anterior que transformou o Estado num cabide de empregos, com o empreguismo de afilhados e apaniguados políticos), de acordo com FARIAS:


“Entre as realizações de Plácido citam-se a criação do Banco de Desenvolvimento do Ceará (BANDECE), dando continuidade à política de incentivos fiscais, a extensão da rede elétrica a diversas cidades interioranas, a construção e pavimentação de várias rodovias, como a estrada do algodão (importante escoador da produção interiorana) e a edificação de escolas, hospitais, açudes, presídios e até do estádio Castelão.” 7


Além da construção da CE-060, conhecida como Estrada do Algodão, que beneficiou diretamente o município de Mombaça, ligando-o à capital do Estado e facilitando o escoamento da produção de algodão e de seus derivados como o óleo extraído do caroço e o farelo, subproduto mais conhecido por torta e utilizado na complementação de ração animal, o governador Plácido Aderaldo Castelo favoreceu a sua terra natal com a construção do Hospital e Maternidade Antonina Aderaldo Castelo, da Escola de 1º Grau Ananias do Amaral Vieira, da Escola Integrada e Colégio Agrícola de Mombaça (que tinha o objetivo de oferecer ensino de 1º grau, da 5ª à 8ª série, atual ensino fundamental, e ensino técnico profissionalizante, com a formação de técnicos em agropecuária), com a criação da agência do Banco do Estado do Ceará (a primeira instituição bancária do município), com a eletrificação da sede do município por meio da rede elétrica da usina de Paulo Afonso (até então a cidade era provida de energia elétrica gerada por motor à diesel), com a pavimentação das ruas da cidade com paralelepípedo, entre outras obras.


A alternância do poder local na ditadura civil-militar


Considerado, de forma injusta, inábil politicamente, apesar da sua retidão e firmeza de caráter, o governador Plácido Aderaldo Castelo, que “nunca tinha candidatado-se a cargos executivos antes de ser indicado governador do Ceará, como também não se candidatou após deixar o governo do Estado” 8 e nem deixou herdeiros políticos, não elegeu o candidato a prefeito da ARENA na eleição municipal de 15 de novembro de 1966.


Empossado governador do Ceará, em 13 de setembro daquele ano, há apenas dois meses na administração do Estado, provavelmente a eleição municipal em Mombaça não sofreu a ingerência do governador recém eleito e empossado.


Nas primeiras eleições municipais ocorridas após o golpe de 1964 (com exceção das capitais) em 15 de novembro de 1966, o MDB cearense elegeu os prefeitos de Mombaça e de mais 21 municípios, a saber: Aiuaba, Campos Sales, Canindé, Caridade, Caririaçu, Guaraciaba do Norte, Ipueiras, Itapipoca, Itatira, Jaguaretama, Jaguaribe, Maranguape, Martinópole, Mulungu, Pacoti, Poranga, Reriutaba, Santana do Acaraú, Santa Quitéria, Tabuleiro do Norte e Uruoca. Em Mombaça foi eleito José Marques de Sousa, correligionário político do deputado estadual Francisco Castelo de Castro e do deputado federal Antônio Paes de Andrade, ambos naturais do município e que despontavam no cenário político estadual e nacional.


Isso demonstra que, independentemente dos fatores políticos externos, a disputa política municipal em Mombaça é marcada pela polarização e pelo mandonismo local, onde duas facções políticas buscam o seu espaço e alternam-se no poder, conforme as alianças locais são estabelecidas.


Esta polarização política denota-se de forma tão acentuada que, até meados da década de 1960, existiam dois clubes sociais em Mombaça que não eram compartilhados pelos mesmos freqüentadores. O Excelsior, inaugurado no dia 31 de julho de 1948, que era freqüentado pelos correligionários da União Democrática Nacional (UDN) e o Recreativo que era freqüentado pelos correligionários do Partido Social Democrático (PSD).


O regime militar entre as várias aberrações impostas criou a “sublegenda” que permitia que antigos adversários políticos da União Democrática Nacional (UDN) e do Partido Social Democrático (PSD), de “ideologias diferentes”, convivessem sob a mesma sigla partidária, com a criação do bipartidarismo, em facções internas diversas.


A eleição municipal de 15 de novembro de 1970 em Mombaça apresentou um fato inusitado: teve 6 candidatos a prefeito (3 pela ARENA e 3 pelo MDB), um recorde estabelecido e que se mantêm até hoje. Foram candidatos pela ARENA: José Sidrião de Alencar Benevides, tendo como vice-prefeito Anísio Mendes Cavalcante, eleitos com 3.155 votos; Onofre Vieira dos Santos, tendo como vice-prefeito Severino de Sousa Neto, que obtiveram 1.656 votos; José Pereira de Oliveira, tendo como vice-prefeito Elias Lopes Cavalcante, que obtiveram 449 votos. Total de votos sufragados a ARENA: 5.260 votos. Foram candidatos pelo MDB: José Venício de Lima Martins, tendo como vice-prefeito Paulo Sá Lima, que obtiveram 2.010 votos; Joaquim Assis de Queiroga, tendo como vice-prefeito Antônio Aires Teixeira, que obtiveram 1.843 votos; Francisco Pinheiro Jota, tendo como vice-prefeito José Lindolfo da Silva, que obtiveram 1.158 votos. Total de votos sufragados ao MDB: 5.011 votos.


Naquele ano de 1970 a população mombacense sofria as conseqüências causadas pelo fenômeno climático da “seca” que de tempos em tempos assola o Nordeste brasileiro e continuava impassível ao que ocorria nos bastidores da política nacional. Nem mesmo a conquista do tricampeonato mundial de futebol pela Seleção Brasileira, no México, era capaz de aplacar as agruras de uma população predominantemente rural, com um alto índice de analfabetismo, dependente das benesses dos chefes políticos locais e que tinha como principal meio de comunicação, o rádio. A televisão era um sonho de consumo para poucas famílias, prevalecendo a política da boa vizinhança que permitia o compartilhamento do aparelho de televisão, introduzindo na sociedade brasileira a figura do televizinho.


Até o final da ditadura civil-militar em 1985, ocorreram mais três eleições municipais nos anos de 1972, 1976 e 1982, quando foram eleitos prefeitos municipais de Mombaça, respectivamente, José Valdomiro Távora de Castro (eleito pela ARENA), Walderez Diniz Vieira (eleito pelo MDB) e, reconduzido para um segundo mandato, José Valdomiro Távora de Castro (eleito pelo PDS).


Apesar do fracasso do modelo econômico e do regime de 1964 encontrar-se nos seus estertores, a dependência sócio-econômica da população dos pequenos municípios, como Mombaça, favorecia o fenômeno do clientelismo político, permanecendo indiferente aos acontecimentos da política nacional.


Conclusão


Concluimos que, os pequenos municípios brasileiros, a exemplo de Mombaça, viveram um “mundo à parte” no tocante às atrocidades cometidas pela ditadura civil-militar. A população, “bestializada”, não tinha acesso aos meios de comunicação, por ignorância ou por negação a esses meios, que eram restritos às elites locais.


Particularmente, Mombaça viveu o seu “milagre econômico” na gestão do governador do Estado do Ceará, Plácido Aderaldo Castelo, com as obras estruturantes tocadas por seu governo e que, de certo modo, impulsionaram o município até então dependente do vizinho município de Senador Pompeu.


A economia do município que tinha como sua principal fonte de renda a produção algodoeira e seus derivados, chegando a ter três usinas de beneficiamento de algodão, além de três indústrias de destilação de aguardente de cana, sofreu uma forte depressão com o encerramento de suas atividades em decorrência da falência da produção algodoeira e da ausência de financiamento das atividades produtivas, demonstrando a dependência do capital estatal para a manutenção de suas atividades.

1 Bacharel em Administração pela Faculdade de Ciências Humanas de Fortaleza (FCHFOR), da UNICE – Ensino Superior e especializando em História do Brasil pelo Instituto Superior de Teologia Aplicada (Faculdades INTA). Sócio da Associação Nacional de História (ANPUH), sócio efetivo da Associação Brasileira de Pesquisadores de História e Genealogia (ASBRAP), sócio colaborador do Colégio Brasileiro de Genealogia (CBG) e sócio fundador da Associação Cearense dos Escritores (ACE). É editor do site Maria Pereira Web (http://www.mariapereiraweb.net) que tem o objetivo de preservar a memória e divulgar a História de Mombaça, no Estado do Ceará.


2 Gina Vidal Marcílio Pompeu (organizadora). História de nossa gente. 2004, p. 142.


3 Gina Vidal Marcílio Pompeu (organizadora). Op. cit. p. 145.


4 Secretaria da Cultura do Ceará. Inventário do Acervo Virgílio Távora. 2003, p. 121.


5 Tivemos acesso e fotografamos o documento original em 3 de fevereiro de 2006, quando o Acervo Virgílio Távora se encontrava sob a custódia do Arquivo Público Intermediário do Estado do Ceará. Apesar do referido documento ter sido publicado em edição da Secult no ano de 2003, somente obtivemos a permissão de fotografá-lo mediante solicitação escrita feita a Sra. Tereza Maria Távora
Ximenes, filha do ex-governador Virgílio Távora, comprometendo-nos de não utilizá-lo “indevidamente” sob o risco de sermos acionados judicialmente.


6 Marcelo Linhares. De Mombaça à Mombasa. 1976, p. 13.


7 Aírton de Farias. História do Ceará: dos índios à geração Cambeba. 1997, p. 247-248.


8 Francisco Josênio C. Parente. O Ceará dos coronéis (1945 a 1986). In: Simone de Souza (organizadora). Uma nova história do Ceará. 2004, p. 402.


Referências bibliográficas


Internet:


Maria Pereira Web. Plácido Aderaldo Castelo. Disponível em: . Acesso em 25-JAN-2011.

Wikipédia. Aristides Lobo. Disponível em: . Acesso em 25-JAN-2011.


Livros:


BENEVIDES, Augusto Tavares de Sá e. Mombaça: biografia de um sertão. Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1980.

BURSZTYN, Marcel. O país das alianças: elites e continuísmo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1990.

CRUZ, Fernando Antonio Lima. Padre Sarmento de Benevides: poder e política nos sertões de Mombaça (1853-1867). Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2010.

FARIAS, Aírton de. História do Ceará: dos índios à geração Cambeba. Fortaleza: Tropical, 1997.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 2 ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1975.

LINHARES, Marcelo. De Mombaça à Mombasa. Brasília: Gráfica do Senado, 1976.

MONTENEGRO, Abelardo F. Os partidos políticos do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1980.

PARENTE, Francisco Josênio C. O Ceará dos “coronéis” (1945 a 1986). In: SOUZA, Simone de (organizadora). Uma nova história do Ceará. 3 ed. rev. e atual. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004. p. 381-408.

POMPEU, Gina Vidal Marcílio (organizadora). História de nossa gente. Fortaleza: INESP, 2004.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.

SECRETARIA DA CULTURA DO CEARÁ. Inventário do Acervo Virgílio Távora. Fortaleza: Secult, 2003.