26.4.11

O Poder Moderador e o legado de Benjamin Constant no Brasil

Artigo publicado originalmente na

Revista Brava Gente Brasileira

O Poder Moderador e o legado de Benjamin Constant no Brasil


Cristian Derosa

Henri-Benjamin Constant de Rebecque foi um dos escritores mais lidos durante o início do século XIX. Suas idéias fizeram parte do movimento que motivou a Restauração na Europa, após a destruição causada pelas idéias da Revolução Francesa.

Das idéias do escritor francês veio grande parte dos conceitos políticos que ajudaram a construir o Império do Brasil. Diz-se freqüentemente, a respeito do filósofo educado na Inglaterra, que o seu pensamento pairou sobre os que escreveram todas as cartas constitucionais do Brasil, da primeira à última. É possível que o pensamento deste homem tenha influenciado não somente a política institucional do primeiro e segundo império, mas também a compreensão política do país no decorrer do período republicano.

Das suas criações mais populares destaca-se o Poder Moderador, atribuição de caráter conciliatório pertencente à pessoa do monarca. É bem verdade que alguns autores atribuem a criação a pensadores como o francês Clermont Tonnerre, devendo a Constant somente o incremento final da separação em um poder diferente do executivo. Assim, coube a Constant uma feição última deste poder neutro que desempenhou papel imprescindível na política do Império do Brasil. Nas palavras de Pimenta Bueno, no livro Direito Público Brasileiro, Análise da Constituição do Império, o quarto poder se caracteriza “como a mais elevada força social, o órgão político mais ativo, a mais influente de todas as instituições fundamentais da nação (…). É quem mantém o equilíbrio, impede seus abusos e conserva-os na direção de sua alta missão”. Alves Branco, senador do Império, sintetiza ainda melhor o novo poder como uma das grandes garantias conservadoras e seguras da política: “Expressão das necessidades fundamentais, direitos adquiridos, interesses criados, tradições, glórias, e que vigia, para que a sociedade não seja todos os dias subvertida, dando tempo à meditação fria, e cedendo somente a necessidades reais e profundamente sentidas”. O visconde do Uruguai também descreve este poder como “não de movimento, mas essencialmente conservador”, que tem por objetivo moderar e conter a ação. É responsável por “manter a independência e harmonia dos demais poderes”. Em termos gerais, não se sabia como utilizar o poder moderador, tal como previsto na Constituição, até 1840, quando foi regulamentado seguindo um modelo parlamentarista.

Os liberais naturalmente viam a prerrogativa neutra do Imperador como um obstáculo para muitas reformas que acreditavam necessárias e urgentes ao país. Não foram poucas as tentativas de extingui-lo. A mais conhecida foi logo após a abdicação de 7 de Abril. Frei Caneca, radical do movimento pernambucano de 1824, chegou a considerar a inovação uma “invenção maquiavélica, chave mestra da opressão, o garrote mais forte da liberdade dos povos”. De fato, a concentração de poder nas mãos do imperador causava insatisfações políticas, já que ele assumia a função de chefe de Estado e de Governo através de um quarto poder. A estratégia política dos liberais tentou derrubar a legitimidade do poder moderador usando meios hoje muito comuns na política. Surgiu uma opinião, entre os liberais, que era contrária ao fato de que o poder moderador não possuía necessidade de referenda para os seus atos. A princípio não foi dada atenção à reclamação dos liberais, mas era desde então sabida a posição do partido em relação ao tema e, mais tarde, em 1834, durante as assembléias do Ato Adicional (conjunto de medidas tomadas para modernizar o país que trouxe importantes conquistas, entre elas, a maior autonomia para províncias), o assunto retornou à pauta do Legislativo.

Naquele momento, houve uma inversão estratégica de papéis entre liberais e conservadores. Os conservadores, com o objetivo de salvar o Poder Moderador dos ataques liberais, assumiram a atitude defensiva e procurou-se, no Senado, adotar a posição liberal de que os atos da moderação estavam sujeitos à referenda dos ministros, o que era sustentado então por Feijó, durante discussão da Lei da Regência. O objetivo dos conservadores era o de salvar o Poder Moderador da avalancha contrária que enfrentava, tornando-o mais democrático, garantindo sua permanência. Para combater essa atitude, os liberais passaram a defender o ponto de vista antigo dos conservadores, de que não necessitava de referenda. O objetivo, assim, era o de minar a existência daquele poder, tornando-o uma referência antidemocrática. Se a posição dos liberais caminhava na contramão das convicções do partido, a atuação dos conservadores, ao contrário, representou justamente a função conservadora: de implementar mudanças quando estas se julgam necessárias e ao atenderem às reclamações gerais. O quarto poder acaba sendo salvo com a união da Câmara e a maioria do Senado.

O pensamento de Constant faz parte da corrente moderada que influenciou a nova era da teoria política, a Restauração. O pensamento restaurador veio após o fim do Império Napoleônico e teve o objetivo de restituir a ordem dos pensamentos políticos mais seguros, em oposição às idéias radicais do período revolucionário. Seguindo a tendência da maioria dos teóricos do seu tempo, Constant deslumbrou-se com a política inglesa e passou a repudiar as idéias influenciadoras da Revolução, entre elas a de Rousseau.

Os princípios de Benjamin Constant foram, durante todo o período monárquico brasileiro, a grande inspiração que levou, junto aos políticos conservadores e liberais, o impulso pelas garantias e leis que melhor representassem a liberdade dos povos de acordo com o melhor do constitucionalismo inglês e da Santa Aliança. Constant era francês, mas profundamente decepcionado com os frutos da Revolução Francesa ao ponto de ir estudar na Inglaterra. Em seus Princípios Políticos Aplicáveis a Todos os Governos, Constant refutou as idéias de Rousseau sobre o poder ilimitado e a idéia da Vontade Geral. Para Constant, o mais importante bem que a sociedade pode prover é a limitação de todas as formas de poder. Isso não significa limitar os detentores do poder com a criação de um poder regulador, mas o poder em si, uma diferença capital no que diz respeito à administração pública. A Vontade Geral de Rousseau, segundo Constant, havia sido entendida de múltiplas formas por muitos escritores, caracterizando-se muito mais por um instrumento de poder do que de garantia constitucional.

Tanto na forma de atuar e legislar como no modo de administrar o Estado, o Brasil sofreu influência ininterrupta deste pensador que tinha, como grande admirador, D. Pedro II, por meio de José Bonifácio de Andrada e dos tutores que educaram os príncipes imperiais. A estratégia de conciliação, na qual o imperador se aliou inúmeras vezes com a elite agrária, quem de fato deteve o poder no Brasil até a metade do século XX, provém da máxima de Constant, na qual o poder deve ser compartilhado com o proprietário, valorizando assim a propriedade que é o verdadeiro exercício da liberdade. Suas teorias tornaram possível uma transição do conservadorismo português para, junto de outros teóricos de influência conjunta, colaborar na criação de uma consciência conservadora autenticamente brasileira.

No artigo, As consequências da teoria de Rousseau, do livro Princípios Políticos, Constant ataca o escritor culpando-o pela tirania dos governos populares idealizados por ele, o que considera muito mais terríveis do que as monarquias absolutas. E ataca impiedosamente o adversário: “Seria fácil mostrar, por incontáveis exemplos, que os sofismas mais grosseiros dos apóstolos mais ardorosos do terror, e nas circunstancias mais revoltantes, foram apenas conseqüências perfeitamente consistentes dos princípios de Rousseau”. Constant ressalta insistentemente que uma nação não é mais livre se possui uma constituição que assegure poder a mais representantes. “Somente o grau de poder político, independente das mãos em que esteja concentrado, torna uma constituição livre ou um governo opressor; e quando a tirania subsiste, ela é mais terrível se o grupo tirânico for grande”.

Um exemplo claro desta deturpação do que seja a liberdade está expresso atualmente na maioria das manifestações públicas brasileiras quando o assunto é democracia. Sustenta-se frequentemente que o Brasil é um país democrático, pois o povo escolhe seus governantes em eleições diretas. Apoiando-nos no pensamento de Constant, hoje podemos compreender que vivemos em uma ditadura da maioria, onde inexistem garantias constitucionais seguras. Quando o que se acredita ser a vontade popular acumula mais poder do que qualquer constituição ou leis, sabemos que há um grupo tirânico grande no poder das decisões civis.

Foi baseado nas máximas de Constant que os ideólogos do império criaram, a partir de 1840, o modelo parlamentarista brasileiro, baseado no britânico. Este modelo possuía a inconfundível marca de Constant, o que o diferia inegavelmente do modelo inglês. O poder moderador, dessa forma, só passou a ser efetivamente posto em prática a partir da efetivação do modelo parlamentar que vigorou até o fim do império. Neste modelo, o imperador passava a ser detentor somente do quarto poder e não mais do executivo como era anteriormente, apesar de ainda estar vinculado a ele por meio da Constituição. Ao cargo de Presidente do Conselho de Ministros, equivalente ao primeiro-ministro, era atribuída a chefia do executivo. O cargo fora criado em 1847 e representou o início oficial da monarquia parlamentar. Em relação ao resto do mundo, o Brasil caminhava igualmente na direção das democracias legítimas e se encontrava anos-luz à frente, por exemplo, dos seus vizinhos latino-americanos, que criavam suas repúblicas com base na herança da Revolução Francesa, já desgastada e arrependida na Europa. No primeiro reinado, porém, o poder monárquico ainda guardava resquícios do absolutismo unindo em si as idéias liberais que culminaram na Revolução Liberal do Porto, a partir de 1821.

Princípios Políticos Aplicáveis a Todos os Governos é um livro que devia fazer parte da biblioteca de qualquer político. Afinal, para Constant, independente da forma ou do regime adotado por um país, há princípios que se devem ser seguidos, por fazer parte das reais aspirações presentes na natureza humana. No entanto, pouco se houve falar, tanto no meio acadêmico quanto em esferas políticas mais letradas, a respeito deste homem que influenciou nossos princípios constitucionais. E há um motivo para isso. Ao defender a limitação de toda forma de poder, Constant se torna um autor desconfortável para a imensa maioria dos intelectuais brasileiros amantes de Rousseau e do que queiram acreditar ser a Vontade Geral.

Fontes consultadas

Visconde do Uruguai. Ensaio sobre o Direito Administrativo. II tomo.

Benjamin Constant. Princípios Políticos Aplicáveis a Todos os Governos.

José Murilo de Carvalho. A Formação das Almas.

Pimenta Bueno. Direito Público Brasileiro, Análise da Constituição do Império.