2.9.11

Segregação residencial ontem e hoje

  • Imagem de uma das favelas do Complexo do Alemão / Foto: wikimedia-cc

    Engana-se quem acha que as favelas cariocas são frutos, apenas, da reforma urbana do prefeito Pereira Passos. Sua origem tem ligação com dois focos de tensão que afetaram a cidade do Rio de Janeiro ao final do século XIX: a crise habitacional e as crises políticas advindas com a República, como a Revolta da Armada (1893-1894) e a campanha militar de Canudos de 1896 a 1897.

    Esses aglomerados de casas insalubres em áreas “esquecidas” pelo poder público têm duas datas de nascimento, de acordo com estudiosos: 1897 no Morro da Favela (atual Morro da Providência), ou, até antes, em 1893, no Morro de Santo Antônio. Era uma resposta aos ataques dos governos municipal e federal daquela época contra os chamados “cortiços”, a habitação coletiva típica do Rio oitocentista.

    A reforma urbanística de 1902-1906, sob a tutela de Pereira Passos, também contribuiu para a proliferação das favelas, por ter expulsado da área central da cidade um grande número de pessoas pobres, que não tiveram outro caminho senão dirigir-se para terrenos ainda desocupados. Aliado ao governo republicano, Passos realizou a primeira grande intervenção urbana no Rio de Janeiro, ao procurar embelezar e modernizar a cidade.

    O “Haussmann Tropical” – alcunha que Passos levou em referência a Georges-Eugène Haussmann, prefeito do antigo departamento de Sena, na França, entre 1853 e 1870 – iniciou a reestruturação da cidade, redefinindo o centro e as áreas residenciais, oficializando a separação espacial entre ricos e pobres, e tornando-se, paradoxalmente, um grande responsável pela consolidação inicial das favelas. Com as grandes levas migratórias ocorridas nas décadas de 1940 e 1950, esses assentamentos informais difundiram-se ainda mais pela cidade – processo que continua até hoje.

    Esta segregação é potencializada pelo constante reconhecimento destas regiões como lugar de concentração do tráfico de drogas e da marginalidade. Mesmo tendo sido sempre uma realidade no contexto da expansão espacial do tecido urbano carioca, o Poder Público ao longo do tempo tratou as favelas como problemas provisórios, tanto que nem apareceriam nos mapas. Se as favelas não eramreconhecidas, elas não existiam.

    Definidas e contabilizadas, as favelas só começaram a ser estudadas em meados do século XX, quando, tomadas como o eixo principal, foi novamente problematizada a questão da habitação popular. Este padrão de moradia autoproduzida caracterizava-se pela sua ilegalidade em termos jurídicos e sua irregularidade em termos urbanísticos, além da precariedade e da insalubridade. Quando não pôde mais ser negada, sua existência foi considerada uma “chaga” que deveria ser extirpada e seus moradores removidos.

    O distanciamento social entre a cidade formal e as favelas continua em curva ascendente. A barreira invisível se materializa por meio da autoisolamento da classe média em condomínios exclusivos. Soma-se a isso, os muros invisíveis da estigmatização e do preconceito geradas pela associação simplista entre favelas e criminalização. Segundo Marcelo Lopes de Souza, o ingrediente principal para esta “fragmentação do tecido sócio-político espacial” encontra-se na multiplicação de enclaves territoriais controlados por criminosos de quem se necessita a anuência para que sejam viabilizados quaisquer tipos de intervenção estatal.

    Embora não seja prerrogativa das favelas a existência do tráfico de drogas e sua violência, a falta de governança nessas áreas empobrecidas encorajou o surgimento de um novo poder paralelo que desafia constantemente o poder público oficial e espalha o terror por todo o território urbano. A alta densidade dos assentamentos irregulares de tipologia urbano-arquitetônica característica, juntamente às precárias condições de vida, traduziu de forma contundente o descaso de toda a sociedade com a população mais empobrecida. Se a cidade formal cresceu dentro de parâmetros urbanos definidos, as favelas se multiplicaram em completa desordem impossibilitando a integração com o resto da urbe e perpetuando o ciclo de pobreza e exclusão.

    Podemos citar como dois exemplos atuais, entrelaçados e que tiveram enorme repercussão das consequências dessa segregação residencial na cidade do Rio de Janeiro: a criação, por parte da Secretaria estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e os ataques de criminosos no final de 2010. No dia 21 de novembro de 2010, a cidade do Rio de Janeiro transformou-se em um território caracterizado pela insegurança. Organizações criminosas coordenaram ataques, incêndios a ônibus e outros atos violentos com a intenção de responder, de certa forma, àquela política de segurança pública. Em função da expulsão dos traficantes de sua “favela de origem”, eles estariam se acomodando em áreas não-pacificadas dento do domínio territorial destas mesmas organizações. Concomitantemente a isso, houve também a transferência de presos dessas facções para presídios de Rondônia – o que teria igualmente desagradado os criminosos.

    Neste instante, verifica-se a diminuição de atos causados pelas facções criminosas na cidade em virtude da presença de novas UPPs. A Secretaria de Segurança já inaugurou 17 dessas unidadesna capital, sendo a próxima no Morro da Mangueira, Zona Norte da cidade. Convém lembrar, porém, que a intenção maior dessa política de segurança pública não é “dar fim” ao comércio ilegal de drogas e armas, mas amenizar os índices de criminalidade e o retorno da ordem e da paz nestas áreas. Todavia, é nítido que o papel das UPPs tem sido positivo para diminuir a violência urbana, principalmente nas zonas próximas às áreas pacificadas. A continuidade desses atos criminosos só tenderia a aumentar a segregação residencial.

    Rogério Santos é graduado em Geografia e Meio Ambiente pela PUC/RJ e pós-graduado em políticas territoriais no Estado do Rio de Janeiro pela Uerj.

    REFERÊNCIAS

    ABREU, Maurício de Almeida e VAZ, Lillian Fessler. "Sobre as Origens da Favela. In: Novas e Velhas Legitimidades na Reestruturação do Território. Anais do IV Encontro Nacional da ANPUR". Salvador. Maio de 1991.

    VALLADARES, Licia do Prado. "A Invenção da Favela: Do Mito de Origem a Favela.com". Editora FGV. Rio de Janeiro. 2005.

    VAZ, Lillian Fessler. "Modernidade e Moradia: Habitação Coletiva no Rio de janeiro, Séculos XIX e XX". Editora 7 Letras. Rio de Janeiro. 2002.

    Fonte: