29.2.12

Sobreviventes de Hiroshima sofreram também com desprezo

Pôster do filme Chuva Negra, de  Shohei Imamura, que relata o drama vivido em Hiroshima. Foto: Divulgação

Aos moradores de Hiroshima e das suas redondezas não bastou terem sofrido o maior ataque atômico da história da humanidade, consumado em 6 de agosto de 1945. Os que sobreviveram à catástrofe foram vistos depois como uns seres amaldiçoados, almas penadas de quem todos vizinhos queriam manter-se à distância.
Salvando a sobrinha
Muitos dos que inicialmente escaparam com vida sofreram de doenças cancerígenas que os levaram a uma morte longa e dolorosa, enquanto que outros, particularmente as mulheres mais jovens, foram colocadas na situação de párias, de intocáveis, porque suspeitavam que elas não pudessem mais gerar filhos saudáveis. Nunca os americanos, autores do bombardeio atômico, transcorrido decênios do ocorrido, manifestaram pesar pelo estrago ou arrependimento público pela matança que premeditadamente provocaram.
Corriam boatos sobre a saúde da jovem Yasuko, conta o escritor japonês Masuji Ibuse no seu livro "A Chuva Negra". A garota, diziam, certamente fora atingida pela doença da radiação. Estava contaminada e se tivesse filhos seria uma desgraça. Assim, um por um, os pretendentes dela foram sumindo. Uma casamenteira que andara pela aldeia de Kobatake e que se interessara por ela não demorou também em desistir. Contavam por lá que ela estivera em Hiroshima no dia que a bomba explodira ¿ no 6 de agosto de 1945 - e que o seu sangue estragara.
Shigematsu Shizuma, o tio da garota, que a tomara para criar, indignou-se. Tinha certeza de que ela não estivera exposta à explosão. Ele sim fora testemunho de tudo, mas não sua sobrinha.
Tentou livrá-la da suspeita arranjando um atestado médico. Foi pior. Aí mesmo é que a desconfiança dos outros aumentou. Decidiu então copiar o diário da sobrinha que, seguindo o exemplo dele mesmo, resolvera registrar os últimos momentos daquela guerra terrível travada contra os americanos.
Queria mostrar a todos que Yasuko estivera, sim, em Hiroxima, mas apenas no dia seguinte, fazendo parte do Corpo Patriótico de Voluntários que fora mobilizado pelas prefeituras vizinhas à cidade destruída. Oferecera-se para socorrer aquela pobre gente atingida pela bomba mortífera, pela ¿nova arma¿ como diziam. Nem sequer fora respindaga pela Kuroi Ame, a chuva negra, a descarga de partículas radioativas que, misturada às nuvens, se desprenderam do céu depois da explosão nuclear.
A explosão atômica

Shigematsu estava na estação Yokogawa, próximo a Hiroshima, quando a bomba explodiu. Mal saltara do trem quando viu ao longe uma intensa claridade expandindo-se. Algo jamais visto. Em segundos, viu-se atingido por uma corrente de ar quentíssimo. A multidão que saltara dos vagões apavorou-se. Tomando a forma de um confuso e estridente vagalhão humano, desatara numa corrida desesperada tentando salvar-se daquele sol incandescente. Ele, instintivamente, agarrou-se numa pilastra para não ser levado por aquela tropelia de desesperados.
O calor da pele o assustou, sentiu-a ardendo. Mas isso não fora nada perto do que ele viu no dia seguinte. Por quilômetros, tudo, mas tudo mesmo, em Hiroshima estava calcinado, retorcido, arruinado. A cidade simplesmente evaporara.
No rio Ota boiavam milhares de cadáveres. Eram os corpos daqueles que se jogaram na água para tentar atenuar as queimaduras. Gesto inútil. O próprio Shigematsu, ao contrário da sobrinha que escapara ilesa, começou a sentir os sintomas da radiação. Um desânimo tomava conta dele enquanto pústulas cresciam no alto da sua cabeça. Os cabelos se foram e os dentes se afrouxaram. Mas, ao contrário dos 140 mil outros habitantes de Hiroxima, incinerados na hora ou mortos dias depois, ele conseguiu continuar vivo.
Shigematsu, passado um pouco das 8h da manhã, chegara a ouvir o vôo solitário do B-29 que cruzara pela manhã os céus de Hiroxima. Era o Enola Gay que transportava o artefato atômico, o Little Boy, o Garotinho, como carinhosamente o pessoal de Los Alamos apelidara a Bomba Atômica de 7 toneladas de peso.
O capitão Paul Tibbets, que pilotava o avião, batizara-o com o nome da sua mãe. Então com 30 anos, ele fora escolhido a dedo pelo general Leslie Groves, o chefe do Projeto Manhattan, para aquela missão especial. Tinham-no como um dos comandantes mais experientes da USAF, a força aérea americana. A viagem da ilha de Tiniam no arquipélago de Guam até a ilha de Honshu, onde ficava Hiroxima, durara seis horas de vôo. A bomba fora lançada às 8h15 da manhã.
Missa para os insetos mortos

Numa entrevista recente Tibbets, que tornou-se um bem sucedido homem de negócios, disse que, lançada a bomba, "num microssegundo a cidade de Hiroxima deixou de existir". Dos 350 mil habitantes que lá viviam nunca se soube ao certo quantos afinal restaram, pois muitos foram morrendo aos poucos, carcomidos pelo câncer e pela leucemia.
Era costume na ilha Honshu, depois da colheita, os agricultores celebrarem uma missa aos insetos mortos. Era um cerimonial estranho no qual eles faziam bolinhos de arroz para alimentar a alma dos insetos que eles, sem querer, esmagavam na época da safra quando tinham que percorrer os campos.
Nunca se soube que os americanos mandassem rezar missa para os desgraçados que eles calcinaram em Hiroshima. Alias, bem pouco tempo atrás, tomados pelo furor vingativo da era Bush, eles voltaram a expor o Enola Gay no Museu Smithsonian em Washington, como para mostrar ao mundo o que eles estão dispostos ainda a fazer.
O site recomenda - Ibuse, Masuji - A Chuva Negra, São Paulo, Editora Marco Zero, 1988.

Fonte:VOLTAIRE SCHILLING