23.5.13

PROCESSO INICIÁTICO NO EGITO ANTIGO

O PROCESSO INICIÁTICO NO EGITO ANTIGO

PRIMEIRA PARTE FASES DA EXISTÊNCIA

Não é suficiente que nos deixemos arrastar pelo fluxo da existência. A corrente da vida está muitas vezes repleta de perigos que devemos superar. O fracasso implica nossa condenação a sermos meras caricaturas de homens.

A jornada humana começa tão logo a criança recebe um nome, ao nascer. A atribuição do nome marca o advento de uma nova existência. Povos antigos acreditavam que aquele que não tinha nome em verdade não nascera.

E aqui surge o primeiro grande obstáculo: o advento da puberdade é acompanhado de metamorfoses físicas e psicológicas de tal natureza que um novo ser parece emergir do invólucro protetor da infância.

O casamento também anuncia uma nova fase de existência. Não requer a vida do casal a criação de uma sutil e permanente harmonia entre os corpos e as almas — uma metamorfose recíproca?

Quanto ao lento processo de envelhecimento, também ele apresenta novos problemas. Faculdades tornam-se debilitadas. De então em diante, o viver exige menos espaço. Para que a vida subsista sem sentimentos de desespero, deve haver sabedoria. E, finalmente, vem a morte. Deve o ser humano enfrentá-la destemidamente e, sem se lamentar, abandonar a vida.

Assim, nascimento, puberdade, casamento, envelhecimento e morte, representam inevitáveis provas. Quer as enfrentemos com felicidade ou em desespero, quer as celebremos ou as deixemos passar despercebidas, elas vêm balizar a senda humana. A cada teste que é superado, uma nova fase de existência tem início.

Ao término de cada estação da vida, um novo ser começa a emergir.

É verdade que, hoje em dia, o homem tem forte tendência a não celebrar os vários estágios da vida por que tem de passar. Ele não sente mais, com a mesma acuidade, o quanto se modifica a cada prova que supera. Pouco a pouco, torna-se inconsciente de suas metamorfoses. Amaciando o caminho de sua vida, removendo todos os obstáculos do seu itinerário, ele nega uma verdade; mente a si próprio. Perdido numa falaciosa neblina da alma, perde o passo em relação à indispensável cadência vital. Hoje, as aflitivas questões sobre o significado da vida provêm principalmente da perda desse ritmo existencial.

Bem ao contrário, civilizações e povos antigos sentiam fortemente o quanto era necessário que celebrassem cada fase da vida. Seus "ritos de transição", porém, não eram apenas "festas" para comemorar a passagem para um novo estágio de existência. Realizando-os, toda a comunidade induzia uma vitoriosa entrada numa nova fase da vida, através de uma série de atos geradores de poder. Entrar (latim: in + ire) num novo estágio da vida, com o auxílio da comunidade e pelo poder do ritual, significava tornar-se iniciado.

Existem -- fato muito importante — iniciações à morte. A morte, a grande transição, é a iniciação final. Todos os povos do mundo exigem que o neófito se submeta à prova da morte e sinta sua angústia, a fim de que ele possa renascer.

Os Mistérios

Este é o propósito das doutrinas e práticas secretas denominadas "Mistérios", que são comuns ao Oriente Médio, à Grécia, e à Roma Antiga.

O ritual foi introduzido para modificar a qualidade da alma do postulante, para elevar sua consciência a um nível super-humano, e para transformá-lo num ser eterno. Assim, os rituais de Adônis ou Tammuz, no Oriente Próximo, de Osíris no Egito, de Orfeu nas Ilhas Gregas, de Dionísio na Hélade — todos representam morte e ressurreição, de modo que possa o indivíduo vivenciar, simbolicamente, um estado super-humano e vida eterna.

Psicologicamente, essas práticas resultaram na verdadeira vitória do homem sobre o seu medo da morte. Através da morte iniciática, o ser humano fica absolutamente convencido de que não sofrerá a angústia da morte, que é a sorte do homem comum. Na verdade, ele sente-se salvo porque foi iniciado.

Abidos

Primeiro, temos de ir a Abidos, para conhecer os iniciados do Egito Antigo. Cidade muito sagrada, Abidos, situada entre Assuã e Tebas, abrigava uma das mais antigas necrópoles da história. Ali repousavam os primeiros reis (a partir de 3200 a.C.). Um constante fervor religioso acrescentou-lhe cemitérios de todos os períodos, ao longo do penhasco da Líbia, a despeito da queda dos Impérios. Não é de admirar, então, que nove décimos das esteias funerárias do Reino Médio (2052-1778 a.C.) exibidas nos museus da Europa tenham vindo de Abidos!

Como podemos explicar esse emaranhado de necrópoles, de três milênios, esse prodigioso depositório de documentos? O fato é que a cidade era duplamente venerável. Originalmente o local do repouso final dos primeiros faraós, tornou-se, no começo do segundo milênio, a guardiã da cabeça de Osíris, o Salvador, que conduzia os homens à imortalidade.

A mais preciosa parte do divino corpo esquartejado por Set, Deus do Mal, repousava nesse local sagrado do Egito, abrigada num santuário encimado por duas penas. O Santo Sepulcro foi construído no lado sul da cidade, num local denominado Peker.

No lado norte havia o grande santuário de Osíris. Erigido ao alvorecer da história — a partir da Primeira Dinastia — reformado, quase destruído e reconstruído várias vezes, tudo o que resta, hoje, é um esboço, quase ilegível, no local de suas sucessivas épocas.

No entanto, juntamente com o Santo Sepulcro, esse templo era o cadinho da fé osiriana. A inestimável relíquia — a cabeça de Osíris — conferia-lhe uma inequívoca aura de sagrado poder.

Terá a mente das massas mudado tanto? Paris preservou seu herói desconhecido em seu Arco do Triunfo. Moscou preservou os restos mortais de Lênin. Parece que toda cidade extrai sua força do legado de seus grandes mortos. Mas não terá sido Osíris, cuja ressurreição acenava com a vida eterna para todo homem piedoso, o maior de todos?

Assim, o Egito quis morrer em Abidos. Morrer perto do deus, descansar na paz que emana do Santo Sepulcro, vivenciar o milagre da ressurreição à sua sombra. Foi este o sonho de todo um povo, século após século.

Lamentavelmente, nada resta de Abidos, hoje, além de ruínas e um baluarte simples: o santuário de Seti l e a estranha construção a ele contígua, denominada Osireion.



Mapa 1: Egito

SEGUNDA PARTE

O OSIREION DE ABIDOS

Esta estrutura é sem dúvida a mais misteriosa do Vale do Nilo. Sua construção teve início durante o reinado de Seti l (19ª Dinastia, 1300 a.C.) e, originalmente, era totalmente subterrânea. Compreende um longo e escuro corredor, que leva a uma câmara cheia de água. No centro deste "tanque", eleva-se uma plataforma retangular, uma espécie de ilha cercada de grossos pilares de granito cor-de-rosa, acessível por duas escadarias.

Qual pode ter sido a finalidade desse extraordinário complexo arquitetônico? Terá ele sido um cenotáfio de Seti l, cujo nome está inscrito no corredor de entrada e na câmara central? Isto é possível, já que as paredes do corredor estão cobertas de inscrições funerárias, como as que são encontradas nas tumbas do Vale dos Reis; além disso, uma espaçosa câmara vazia, que lembra câmaras semelhantes nas pirâmides de Sakkara, e que está situada no lado leste do Osireion, invoca imagens de um enorme sarcófago.

Três ou quatro séculos após sua construção, essa estrutura foi encarada como um local dedicado à adoração de Osíris. Muitos são os indícios arqueológicos que parecem apoiar esta hipótese. Primeiro, a plataforma que se elevava acima da água, na câmara central, provida de duas escadarias, poderia ter sido o próprio monte primordial onde a morte fora conquistada, na aurora dos tempos. Ali, segundo a tradição, Osíris preparou o seu sepulcro. Segundo, as duas cavidades talhadas no piso da plataforma, cuja finalidade não poderia ter sido senão a de acomodar o sarcófago do deus e o santuário contendo suas vísceras — talvez sua cabeça. Finalmente, poços circulares, escavados em torno da câmara central e ainda cheios de solo fértil, usados para conter verdejantes árvores, símbolos da eternidade de Osíris ressuscitado.

Podemos agora perceber a finalidade do Osireion: desejava Seti l que ritos sagrados fossem realizados em Abidos, a fim de assegurar sua imortalidade junto a Osíris e, ao mesmo tempo, perpetuar a adoração ao grande deus. Portanto, o cenotáfio real era também uma tumba de Osíris.

O Osireion, Uma Réplica do Santuário de Osíris em Abidos

Não devemos confundir este santuário com o santuário principal do norte de Abidos, cujas ruínas estão ainda espalhadas no local conhecido como Kom el Sultan.

Raros são os documentos que mencionam este lugar nobre. Mas as poucas descrições que eles apresentam logo revelarão um fato surpreendente. No Museu de Arqueologia de Marselha, há um sarcófago, no qual está representado um montículo redondo, encimado por quatro árvores guardadas por dois deuses com cabeça de carneiro.

Sem a menor dúvida, Osíris repousa sob esse montículo. Seu nome está ali inscrito, e o começo da inscrição, na parte superior do quadro, diz claramente:

"Este é o outeiro que oculta

em seu seio (o Corpo) deteriorado;

E o Lugar Sagrado

De Osíris, que habita no Oeste."

O montículo e as quatro árvores, portanto, referem-se ao famoso sepulcro de Osíris. Mas logo vêm à mente a plataforma do Osireion — simbolizando também o outeiro primordial e elevando acima das águas o sarcófago do deus — e as árvores da eterna regeneração que rodeavam a câmara central.

Seria o Osireion de Seti l uma imitação da grande ruína do templo de Abidos? Se um dia confirmado, esta fato teria decisiva importância, porque toda a progressão iniciática levada a efeito no famoso santuário perdido poderia, neste caso, ser também concebida no complexo arquitetônico do Osireion, ainda de pé. Assim, este último estaria preservando intacta — fato singular quanto ao Egito Antigo e mesmo à história de antigas civilizações — a reprodução exata do ambiente onde se desenrolavam as mais secretas práticas da era faraônica.

Podemos concluir que:

1. No campo sagrado de Abidos, o grande templo de Osíris está completamente destruído. Entretanto, vários documentos (por exemplo, o papiro de ANHAI, estampa nº 10, ou o papiro GREENFIELD, estampa n° 108, no Museu Britânico) preservaram suas principais características: Sob um outeiro rodeado de árvores, havia um tanque cheio de água, onde pilares sustentavam o teto do santuário; e, do centro desse tanque, emergia uma plataforma com duas escadarias, na qual estava situada a múmia de Osíris.


Figura 1: Câmara Central, Osireion de Abidos



Figura 2: Sarcófago número 67, Período Saite. Inédito. Museu arqueológico de Marselha


Figura 3: Detalhes do sarcófago número 67, Marselha. Inédito.

2. Esta descrição, embora muito breve, imediatamente induz uma comparação com o Osireion construído por Seti l — que parece ser uma réplica exata do templo perdido. Ainda existem o tanque, os pilares, a plataforma com sua dupla escadaria, as duas cavidades dispostas de modo a acomodarem o sarcófago e o santuário contendo as vísceras; finalmente, os poços com verdejantes árvores, usadas para emoldurar todo o santuário enterrado na areia. Todos estes dados arqueológicos apontam para o fato de que Seti l pretendeu reproduzir o complexo arquitetônico do grande templo de Osíris, em Abidos.

3. Daí a conclusão de que, como o Osireion parece ser uma cópia do templo destruído, todos os detalhes relativos a este templo podem ser transferidos, sem risco de grande erro, para o complexo arquitetônico do Osireion de Seti l, ainda intacto.

TERCEIRA PARTE

INICIAÇÃO EM ABIDOS

Primeiro, precisamos determinar se iniciações secretas eram realizadas no Egito, ou não, especialmente em Abidos. Neste particular, um antiqüíssimo texto, que remonta aproximadamente a 2000 a.C., quase desconhecido até agora, parece dar uma resposta afirmativa:

"Seguir o deus até sua morada.

Em sua tumba. . .

Anúbis santifica o oculto Mistério de

Osíris

(No) sagrado Vale do "Mestre da Vida"

(Osíris).

(É a) misteriosa iniciação

Do Mestre de Abidos!"

Que poderia ser mais claro? O deus Anúbis, o chacal das necrópoles, participava no desenrolar de uma "misteriosa iniciação", dirigida por Osíris, o mestre de Abidos. Portanto, é para este sagrado lugar que nos devemos encaminhar a fim de conceber — com a ajuda de textos egípcios de várias datas e fontes - como o processo iniciático era desenvolvido na época dos Faraós.

A Grande Jornada — Anúbis, O Guia

Anúbis acolhe o candidato, no umbral do campo sagrado. É ele um "deus medonho", conta o escritor latino Apuleius, após a iniciação por que passou no segundo século da nossa era; "um deus que atua como mensageiro entre o mundo superior e o infernal mundo inferior, com o rosto metade preto e metade ouro, a cabeça bem erguida, e orgulhosamente esticando seu forte pescoço".

Ele transcende todo o Mistério. Um símbolo hieroglífico mostra-o deitado sobre uma grande arca. Esta arca encerra as vísceras de Osíris. O texto a menciona como "o ataúde misterioso", pois, por trás de suas paredes, no alvorecer da história, deu-se um evento prodigioso: o renascimento de Osíris — e, subseqüentemente, de todos os mortos — em função do poder dos ritos que Anúbis criara.

Se, da tumba de Tutancâmon, emergiu um impressionante chacal negro — deitado sobre uma arca encerrando as vísceras do rei — isto seguramente objetivava imortalizar a vigília do deus que descobriu o renascimento e afastar aqueles que não tenham conhecimento deste segredo:

"Secreta, secreta arca; oculta, oculta

(arca),

Que ninguém conhece, que ninguém

conhece

Nunca, nunca!"


Figura 4: Máscara de Anúbis usada para rituais

Portanto, não é morte que esse ataúde encerra. Na verdade, Anúbis representa ressurreição. Esse chacal, cuja cabeça — segundo Apuleius — é metade preta e metade ouro (as cores da morte e do renascimento) é, para o iniciado, o deus da esperança.

É com esperança que devemos vê-lo assomar ao umbral das necrópoles. A todos os mortos e a todos os candidatos à morte iniciática, Anúbis concede o próprio sopro da vida que o Outro Mundo exala:
"Eu sou o Chacal dos chacais,"

proclama Anúbis no Livro dos Mortos,
"Eu sou o luminoso Ar

Que os alentos leva

Aos Veneráveis Seres

Até os confins dos Céus,

Até o fim da Terra!"

Neste momento, Anúbis assume plenamente o seu papel: Torna-se "Guia" — como Hermes na Grécia e "Abridor de caminhos".

Trevas e Portas

Para todo iniciado, o progresso para a iluminação tem o mês mo prelúdio: a longa transposição, sob a orientação de Anúbis, do campo sagrado. Depois, a solene entrada no santuário, que, neste caso, tornou-se o templo de iniciação.

"Entrada para o templo
De Osíris, em Djedu (= Busiris),"

pode-se ler nos Textos do Ataúde, que daí em diante mantêm um animado diálogo, do qual apresentamos o seguinte excerto:

Guardião:

"Quem é aquele que entra

No santuário

De Osíris em Djedu?. .

Quem se aproxima desta Alma?. .

De onde vem ele, esse

Que ascende até esta Alma

Que um elevado monte oculta?

- Fato secreto

Que não conhecemos!"

Postulante:

"Abre para mim!

Em verdade, sou um ser digno de respeito.

Sou alguém que (sabe) manter um segredo.

Sou um servo no templo de Osíris!. .

Abre para mim!

Sou um (homem) que conhece

Sua mágica fórmula,

Fui iniciado nestas (coisas secretas),

E não (as) repeti

Para os não-iniciados."

À porta do templo, o candidato é abordado e sua intenção revelada: Ele deseja "ascender" ao Santuário dos santuários, centro de espiritualidade onde resplandece a Alma de Osíris; deseja aproximar-se do sagrado outeiro sob o qual repousa o Deus Salvador. E vem a resposta do caminheiro, em tom peremptório:

"Que as portas me sejam abertas! Não repeti aquilo que não pode ser conhecido. Sou alguém que (sabe) manter um segredo."

Então as portas são abertas. O itinerário iniciático, porém, é adaptado à planta de cada santuário. Por exemplo, em Busiris, o candidato deve cruzar todo o templo, para alcançar o Santuário dos santuários; em Abidos, ele deve seguir diretamente pelo subterrâneo, para a câmara aquática onde está imersa a tumba.

Disto resultam consideráveis variações nos textos, e o Livro dos Mortos tenta reconciliá-las:

"Para mim, os portais dos Céus

(= a porta do santuário)

Abriram-se de par em par;

Para mim, os portais da Terra

Abriram-se de par em par;

Para mim, os ferrolhos do (deus) Geb

Foram abertos."

Não podemos deixar de lembrar o Osireion de Abidos. Em Abidos, uma passagem subterrânea de aproximadamente 100 metros foi concebida por um povo meticuloso em sua arquitetura, a fim de que a alma se acostumasse a esquecer as ilusões do mundo. Esquecer as tentações pessoais, descer ao âmago desta Terra, era o mesmo que recuperar as energias que a vida consumira.

Não é a Terra a acolhedora matriz onde a árvore se enraíza para preparar seu fruto? Não é ela a Mãe misteriosa que em seu corpo abriga rochas e plantas, feras e homens? Dela todos os seres vivos haurem a vida, e tudo a ela retorna, por ocasião da morte. Nas entranhas maternas, todo ser jaz adormecido, aguardando renascimento. Ao morrer, também o homem volta a essa matriz, à semelhança do embrião,e ali prepara seu renascimento.

Toda a humanidade já sentiu — e ainda sente — o poder criador, o inexprimível mistério da Terra, sua Mãe. Primeiro o iniciado aprende que descer ao interior do corpo da Mãe, deixando-se perder em sua escuridão, é recobrar a vida. A longa noite psíquica do processo iniciático é um retorno às fontes. É ali que o homem há de se banhar e emergir "desperto", iluminado!

Assim proclama o Livro dos Mortos este milagre:

"Tua face está aberta Na morada das Trevas!"

Não obstante, antes de abrir os olhos para a Grande Luz, deve o buscador percorrer uma região escura, onde nada se refere à existência terrena. Antes que possa adquirir conhecimento superior, o homem — morto ou vivo, durante a iniciação ou após a morte — deve primeiro esquecer a Terra e suas ilusões.

Mas então ele pede aquilo por que sentia desejo quando estava vivo: Quer comer e beber; amar e respirar. Tolo! No outro Mundo — ou durante o processo iniciático, que reflete sua essência — ele não terá sua cota de cerveja nem de seu desejo de amar. Mas lhe será dado um incomparável tesouro: Paz do Coração e o supremo poder da Mente.

A dramática introdução do Homem no Mistério é considerada, no Livro dos Mortos, um dos mais impressionantes documentos da literatura universal. Para o Criador do Mundo, Atum, diz a trêmula criatura as seguintes palavras:

O Homem:

Ô Atum, (dize-me),

Por que (então) viajei para o deserto?

O fato é que não há água, nem brisa.

(Esta terra) é profunda, profunda.

Escura, escura,

Sem limites nem fronteiras!

O Deus: Aí viverás, com teu coração em paz.

O Homem: Mas aqui não se pode Satisfazer o amor!

O Deus: (Foi aí que) coloquei

Os poderes da Mente Em lugar de água e brisa, E prazer e amor; E paz mental. Em lugar de pão e cerveja. . .
O Homem: E quanto durará (minha) vida?

O Deus: Viverás milhões e milhões (de anos);

(Tua vida) durará milhões (de anos)!

Tão grande bem-aventurança, após a solitária jornada! Conseguir completar essa passagem, especialmente para o iniciado, era o principal; pois, no fim da estrada — no Outro Mundo ou no templo iniciatório — Deus aguarda sua criatura:

Estás nos portais

Que fora mantêm as multidões;

O guardião do umbral

Sai (e caminha) para ti.

E pega tua mão;

Leva-te ele para o Céu

Junto a Geb, teu Pai!

(Este Deus) exulta

Quando te aproximas;

Sua mão te dá ele;

E te beija,

Tomando-te em seus braços.

à frente das Almas

Um lugar te dá ele.

Neste excerto dos Textos da Pirâmide, o falecido rei, ressuscitado no Céu, obtém do deus o sublime encontro. Mas, nos rituais iniciáticos, é na Terra, nas trevas do Santuário dos santuários, que o homem, "qualificado", durante a apresentação teatral, se põe face a face diante de Deus.

QUARTA PARTE
QUALIFICAÇÃO (ou Preparação para a Noite Sagrada)


Em que consistiam os detalhes dessa extraordinária e sagrada cerimônia? Antes de entrar na Câmara do Julgamento, o candidato é submetido a uma "preparação". Apuleius, iniciado do segundo século A.D.,explica livremente suas idéias a este respeito.
Figura 5: Um sacerdote, lendo escrituras para um candidato; tumba de Kom-el-Choufaga (Alexandria).

Um sacerdote, com "inspirada atitude... e expressão verdadeiramente super-humana", primeiro lê para o candidato escrituras sagradas que retira de um local secreto no extremo do santuário.

O sacerdote "instrui o candidato na preparação necessária à sua iniciação". Exigia-se do futuro iniciado que mantivesse em segredo aquilo que estava prestes a aprender. Que aceitasse de então em diante viver em conformidade com Maat (Verdade-Justiça). Que se comprometesse imediatamente, sem hesitação, com a vida eterna.

"Lembra", diz Ísis, "e para sempre mantém gravado fundo em teu coração, o fato de que toda a tua vida, até o fim da tua existência, até o teu último suspiro, a mim está penhorada."

Portanto, uma promessa era exigida. O juramento era provavelmente feito no interior do santuário, talvez no hipostilo. Em sua austera penumbra e sem alguém que pudesse ouvi-lo, assim se preparava o candidato para os grandes "Mistérios da Noite Sagrada".

E então o seu guia, tomando-o pela mão, levava-o para a última câmara, para o próprio fim da noite. Imaginemos, naquela época, a sagrada emoção do candidato! A famosa Câmara do Julgamento — que os papiros funerários situam no Outro Mundo — tinha sua réplica na Terra: o local da prova iniciática. O misterioso Santuário dos santuários. A!i tinha lugar a pesagem das almas. Ali havia uma balança, a Balança da Justiça.

"Neste dia em que os erros são

contados

Ante o Mestre universal."

Não estará Paheri, um iniciado entre tantos outros, recordando esse prestigioso evento em sua biografia:

"Fui convocado e colocado na Balança; saí

(da Câmara)

Pesado, sem defeitos e salvo."
Após o implacável açoite da Justiça, sacerdotes oficiantes estão aguardando. Estes sacerdotes, neste caso mascarados, tornaram-se os deuses do Julgamento. Aí estão Tot, a íbis; Anúbis, o chacal; Hórus, o falcão. A luz dos archotes desenha um aspecto feroz em seus semblantes, como imagens fugazes de um sonho fantástico; suas silhuetas se movem nas paredes, animadas pelo bruxulear do fogo. O candidato permanece imóvel no umbral.

"No meio da noite", diz Apuleius misteriosamente, "vi o Sol brilhar com cintilante radiação. Aproximei-me dos deuses. . . e os vi face a face!"

Esses deuses são exigentes. Cada um deles vai agora fazer perguntas. O Capítulo 125 do Livro dos Mortos parece ter gravado uma dramática memória desse exame. Primeiro, os deuses dirigem-se ao Guardião do Umbral:

"Traze o candidato!" — ordenam.

Depois, dirigindo-se ao próprio candidato:
"Quem és tu?

Como te chamas?

Para onde foste?

E lá, que viste?"

O candidato dá seu nome. Afirma onde foi e o que viu. Então, dizem os deuses em coro:

"Vem, e cruza este umbral da

Câmara de Maat!"

O candidato avança. Mas seus olhos ficam fascinados por uma forma sublime e branca.

Que são aqueles rostos, cobertos com máscaras de íbis, chacal e falcão, comparados com o radiante rosto humano do mensageiro da esperança? Atrás da balança, aí está ele, Osíris — envolto em sua apertada e imaculada mortalha, segurando o cetro e o chicote.

O candidato se curva. Saúda o Salvador:

"Osíris! Aqui vim para ver a tua

perfeição.

Ambas as minhas mãos (que ele ergue)

Glorificando teu verdadeiro nome!"

Tot, a onisciente íbis, convida então o candidato a avançar:

"Aproxima-te. . . A quem devo te anunciar?"

O candidato, com voz forte:

"Anuncia (minha vinda) Ao (deus cuja morada Tem um) teto de chamas. Paredes de serpentes vivas, E piso (como) um rio!"

Este deus é Osíris! E ele baixa a cabeça, num sinal de aquiescência. Conduzido por Hórus, o falcão, o candidato avança, por entre os lampejos cambiantes da Câmara de Maat. Ante o trono de Luz, proclama sua perfeita inocência:

"Saudações a ti, grande deus, Que és mestre de Maat!...

Eu te conheço,

(Sim), eu sei o teu nome,

E sei o(s) nome(s)

Dos quarenta e dois deuses

Que (aí) estão, contigo...

Não fiz nenhum mal

A seres humanos...

Não pratiquei o mal...

Sou puro, sou puro.

Sou puro, sou puro!"

Paheri, Príncipe de El Kab na Décima Oitava Dinastia, declara em sua biografia que foi "examinado" e considerado "sem defeitos" e, finalmente, "salvo".

A balança contém, num dos seus pratos, um símbolo da Alma — a alma do candidato, carregada com todas as suas ações — e, no outro prato, uma pena, o contrapeso da Justiça, o augusto símbolo de Maat!

Então, o deus Tot registra o peso. Ele está em consonância com Maat; verdadeiramente, esta alma está plena de Maat!

A balança decidiu, e Osíris proclama:

"Eu te outorgo (o título de) "Justo",

"Triunfante".

Em Maat (a Verdade), estás iniciado!"

(Papiro T32, Leiden)

Este é o momento decisivo, em que o homem se funde com Maat. Torna-se, então, a encarnação de Maat.

Se o Egito foi grande — e ainda é — isto se deve a que guiou os primeiros passos do Homem para a Luz Maior. Todos podem, mediante sua conduta, identificar-se com Maat, a harmonia do universo. Todo mundo pode se tornar parte integrante de Maat e alcançar glorificação em sua eternidade.

"Eu penetrei em Maat

(A Harmonia do Universo),

(Sim), em mim trago Maat,

Sou mestre de Maat!"

(Textos do Ataúde, IV, 330)

Regeneração

Tendo o candidato se demonstrado digno, um banho lavava de toda a memória sua condição de homem. Uma espiritualização por meio de rituais seguia-se à promoção espiritual. Entrando nas sacrossantas águas do mar original, e delas emergindo, assim como um novo Sol no primeiro dia da Criação, o ser humano renascia sem passado, sem pecado, e com a eternidade de uma estrela:
"Eis que estamos prontos para viver novamente"

lê-se num hino ao Sol,

"Entramos

No mar primordial.

Restaura ele o vigor

Àquele que (sua) juventude recomeça.

(Que o velho homem) tire suas vestes.

(Então) que um outro as ponha!"

No Egito, são numerosos os lagos artificiais junto aos templos. Nesses lagos é que os ritos de purificação eram conferidos aos sacerdotes e, provavelmente, neles eram também realizadas iniciações.

A necrópole de Abidos ainda contém um desses lagos artificiais, oculto na estranha estrutura do Osireion. Mas aqui há um aspecto importante: para chegar à tumba de Osíris, sobre a plataforma na água, o candidato primeiro tinha de entrar na água sagrada, para se lavar de seus pecados. Nenhuma outra estrutura ainda existente no Egito parece mais apropriada para iniciações.


Figura 6: Lago Sagrado, Karnak

Agora, imaginemos o esplendor de sua Câmara, quando ela ainda tinha teto, conforme atestam as pesadas arquitraves. A água do lago cintila sob o fugaz tremeluzir dosarchotes. Sacerdotes oficiantes, mascarados, põem-se à volta do candidato, que abandona suas vestes — as vestes impuras que cobriam o homem anterior. Lentamente entra no mar original. A água sagrada o envolve. Como amorosa mãe, ela o acolhe. E, qual Sol a se pôr, o candidato se aprofunda no abismo. Depois, dele emerge como um Sol, ressuscitado.



Tendo-se tornado Osíris — por qualificação — e se assemelhado a Ra (o Sol) — pela regeneração — o candidato sobe os doze degraus do Osireion que levam à imponente plataforma. Entre os pesados pilares que protegem o deus morto, ele recebe novas vestes: mantos de linho branco.
Figura 7: Morto, com a coroa na mão esquerda e conduzido por Anúbis. Louvre, Paris



Figura 8: Osíris sendo ressuscitado sob a Árvore Sagrada. Dendera.

QUINTA PARTE

ILUMINAÇÃO

O candidato aguarda a manifestação do Sacrossanto Ser. Submete-se e espera. Este período de espera é muito importante, pois, quanto mais longo for, e mais humilde se faça o candidato, mais impressionante será a revelação do Sacrossanto Ser, que aparecerá no momento oportuno. No processo iniciático, a epifania é uma apoteose, como um estado divino. É por seu intermédio que se abrem as pesadas portas do subconsciente:
"O resplendor da Luz Projetou-se em meus passos!"

Este é o grito de liberação que os Textos do Ataúde ocultam.

Na escura plataforma, o dourado catafalco de Osíris, o Salvador, cintila com fulvos reflexos que se fazem vivos à luz dos archotes. Basta lembrarmos o grito de espanto que foi emitido quando o catafalco de Tutancâmon foi descoberto!

As portas do Sepulcro logo se abrirão; então aparecerá o divino sarcófago, com suas sagradas relíquias.

Vestido de linho branco, o candidato continua aguardando. Tudo o que ele aprendeu sobre Osíris — seu sofrimento, sua morte, e a ressurreição que prometeu aos homens — tudo o que sua mente fervorosamente concebeu, súbito lhe será trazido à Luz. Um choque há de resultar desse confronto, um golpe, para a alma, que há de selar o pacto entre o homem e seu deus. Um novo iniciado iluminará o mundo.

Espessos arbustos cercam a tumba de Osíris. Ali estão, como viçosas testemunhas da ressurreição do deus. Elas abraçam seu corpo e lhe dão forças:

"A planta viva se faz viçosa!"
proclama uma inscrição:

"Quando ela se faz viçosa, a Terra

também se enche de vida!

Vede, Osíris recupera sua juventude!"

Neste sublime local de adoração, nesta ilha de Maat (Ordem e Verdade Cósmicas), o deus afirma sua juventude; ressuscita. E a folhagem testemunha sua ressurreição.

Em torno do candidato, os sacerdotes oficiantes se movem preparando a abertura do Santo Sepulcro. Seus nomes desencadeiam mágico encantamento; alguns são conhecidos, como Guardião dos Portais, Puro Arquivista, Mestre do Trono (Papiro T32, de Leiden).

O ritual da aparição de Osíris, o Salvador, era sem dúvida bastante longo. Será que ele incluía diálogos semelhantes aos que ocorriam ante a Balança de Maat? Algumas invocações, esparsas pelos textos, levam-nos a crer que sim:

"Osíris!

Salve!

(Tu que estás deitado) em (teu) secreto

abrigo.

Tu, cujo coração parou!"

(Textos do Ataúde, VII, 1119)

Estes apelos—e muitos outros—lembram trechos de "scripts" perdidos.

Então, a solene voz do deus ressoa no Templo:

"Que o candidato se adiante...

Que ele veja as minhas feridas!"

(Textos do Ataúde, l, 142)

Ver as feridas do Salvador, as feridas de Osíris, pelo qual é o homem salvo! Para a alma religiosa, nenhuma outra aparição pode se igualar à do grande deus, ressuscitado!


Figura 9: Esteia do sacerdote Oun-Neferi. Museu Britânico, número 808. Não publicada.

O sacerdote, tendo alcançado o topo da escadaria, abre o naos que

encerra o santuário de Osiris.

Os pesados ferrolhos do catafalco deslizam de suas alças. As portas de ouro se entreabrem por entre a verde folhagem:

"Para ti, as portas do Horizonte

do Mundo Vindouro se abrem!"

(Papiro T32, Leiden)

Contempla o deus! Olha, no fundo do sagrado ataúde, Osíris renascendo pelo poder do ritual! Sua cabeça está coroada, seu corpo está tranqüilo, e sua mortalha imaculada. Sua fisionomia é majestosa.

Murmura o postulante:

"Grande deus.

Sou o teu filho.

Contemplando o teu Mistério."

(Livro dos Mortos, XLIV)

"Contemplar o Mistério" é nele participar, e é ressuscitar também, como Osíris. É tornar-se um Osíris. É um momento crucial, o instantâneo zênite de uma vida humana! Nasce um iniciado. A santidade nele se infunde. À Santidade está o homem ligado.

"Vês a câmara funerária,

(O deus) em sua prístina forma,

(Sim), Osíris em sua mortalha,

No local de sua preservação.

Vês o glorifiçado Corpo,

Deitado em seu leito fúnebre,

(Sim), a nobre Múmia

Em seu leito exposta!"

Um sacerdote oficiante, sem dúvida, acaba de cantar, com voz monótona, estas sagradas palavras. Mediante sublime visão, o homem e Deus estão daí em diante unificados. Realiza-se, então, a mutação do homem — real e inexprimível. É a união mística, que, depois do Egito antigo tantos séculos tentarão descrever, sem jamais conseguirem expressar na linguagem verbal o incomparável esplendor do alvorecer de uma alma.

O iniciado, seguindo as pegadas de Osíris, está ligado a seu deus. Pela iniciação, ele já vivenciou morte e ressurreição. Seus olhos já se estão enchendo de divina luz. Ele é portador da eterna Luz do Salvador. Ele próprio é um Ser Luminoso; está Iluminado:

"Em verdade, sou aquele que vive

na Luz. (Sim), sou uma Alma que Nasceu

do corpo do deus! Sou um dos deuses e uma das

almas

Que vivem na Luz. . . (Sim), sou um falcão que vive

na Luz,

Cujo poder reside em sua (própria)

luz

E em seu (próprio) esplendor!

Aos confins do Céu viajo

e deles volto,

E ninguém pode a mim se opor...

(Ô Osíris!)

Senhor das Manifestações,

Grande e majestoso,

Eis-me aqui!

E o Outro Mundo para mim se abriu;

Os caminhos do Céu, (os caminhos) da Terra,

Para mim foram abertos,

E ninguém pode a mim se opor!”


Figura 10: Réplica do Sepulcro de Osíris. Ísis (a ave) está sendo fecundada por Osíris. Cairo.
O Grande Falcão se alça em vôo. Sua escura silhueta nobremente se delineia contra o disco solar. Não deve o iniciado persistir num mundo ilusório. Das formas desse mundo se desarraiga ele. Para a Luz ascende, a fim de se tornar real. Ninguém poderá sustar o vôo do grande Falcão. O ser humano abandonou seu velho manto, cruzando o Umbral da Iluminação. Um dia, toda a humanidade, seguindo a senda iniciática, imitará o vôo da Ave da Luz. Em seu estágio final, estará o homem "realizado". Assim, conforme a Vontade Divina, a meta misteriosa da humana aventura será alcançada. Tudo se terá cumprido.

(Ô Osíris)

Senhor das Manifestações,

Grande e majestoso,

Eis-me aqui!
Fonte: http://dc268.4shared.com/doc/09kEJTDo/preview.html